João Bosco Botelho
O conflito gerado na convivência desde tempos
remotos no espaço sagrado, onde a doença seria engendrada pela divindade, e no
espaço profano, com o predomínio do conhecimento empírico, determinou os rumos
escolhidos das culturas sob a influência greco-romana.
A cultura grega antiga, notadamente a da
época hipocrático‑platônica, se consolidou com marco divisor da necessidade de
distinguir a opinião do conhecimento. Não bastava alguém supor algo de qualquer
coisa, era imperativo acrescentar argumentos demonstrativos da linha condutora
do evento. Também por essa razão, ficou mais bem delimitada a materialidade do
espaço profano, onde iria florir, com maior vigor, os saberes para iniciar o
moroso processo tentando desvendar o corpo do poder das divindades.
Com esse suporte, os médicos gregos, particularmente
os de Cós e de Knido, começaram a usar a linguagem escrita para decompor a
doença e retirá‑la da primazia divina. No livro A Doença Sagrada, escrito no século 4 a.C., atribuído a Hipócrates,
esta questão está transparente: "Quanto à doença que chamamos sagrada, eis
aqui o que ela é: ela não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as
outras; ela tem a mesma natureza que o resto das doenças e por origem as mesmas
causas de cada uma delas."
As linguagens entrelaçando os conhecimentos
historicamente acumulados se ancoraram na teoria dos quatro elementos do médico
Empédocles – terra, água, ar e fogo –, a justificativa das mudanças
determinadas pela doença no corpo. Esse também filósofo, natural de Agrigento, na
Grécia, pretendendo a renovação da imagem do mundo, fundamentou a sua teoria em
concepções mais antigas, que sustentavam, desde a oralidade, a importância do
fogo, da terra, do ar e da água, na sobrevivência do homem.
Pouco tempo depois, a teoria dos Quatro
Humores, descrita por Políbio, o genro de Hipócrates, refletida nos elementos de
Empédocles, concebia o ser humano formado de quatro humores: sanguíneo (ar), fleumático
(água), bilioso amarelo (fogo) e bilioso preto (terra). A saúde seria o
resultado da perfeita harmonia entre esses humores e a doença apareceria, quando
um deles prevalecesse sobre os outros.
Contrariamente,
os jônicos admitiram outros elementos interferindo na saúde e na doença. O
autor desconhecido de um dos mais célebres livros desse período "Da
natureza do homem", se recusou a crer na regra da teoria dos quatro
humores. Contudo, prevaleceu o defendido pelos hipocráticos.
Essa extraordinária construção teórica grega,
onde as linguagens iniciaram e mantiveram o processo de conflito explícito entre
a medicina e as ideias e crenças religiosas, retirando dos deuses e deusas o
poder de decidir sobre a vida e a morte, por meio da teoria dos Quatro Humores,
representa o marco da medicina firmada na busca incessante da materialidade da
doença.
Um dos médicos mais importantes, do século 1,
o romano Cláudio Galeno reconstruiu a teoria dos Quatro Humores por meio da
teoria dos Quatro Temperamentos (sanguíneo, linfático, bilioso preto e bilioso
amarelo), acrescentando forte componente social: as doenças estariam também
ligadas às características comportamentais.
A partir da cristianização do império romano,
começando com Constantino, no século 4, os processos teóricos gregos foram
integrados à cultura médica romana. As muitas linguagens oriundas dos
territórios conquistados pelas legiões romanas se encarregaram de levar os
saberes da medicina greco-romana e atravessaram mil anos do medievo europeu.