Amigos do Fingidor

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Linguagens, dor histórica e doenças



João Bosco Botelho
         
É possível compreender a fantástica relação entre as linguagens e o nascer da consciência em si mesmo, diferenciando o cérebro da mente entrelaçando a natureza, o social e a História. Esse conjunto complexo colocou o homem e a mulher numa condição singular e difícil: sobreviver com menos dor e mais prazer – consciência em si – mantendo a diversidade das linguagens.
Após a certeza de poderem desfrutar de vida cada vez mais confortável, homens e mulheres expressam continuamente, a inconformidade com a dor, o desconforto. Sendo mais inteligentes, após a morte não poderiam ter a mesmo destino dos outros animais. Tornou-se imperativo também estruturar o conforto após a morte. Mas, não para todos! Somente para os aliados e os concordantes com a ordem teriam um repouso perfeito depois da vida.
Desde o passado distante, as mudanças operadas no corpo, causando a angústia da deformidade dolorosa, eram as primeiras evitadas. A barriga eviscerada no acidente de caça ou nas disputas pela liderança ligavam a dor e a morte ao mundo temido. Por outro lado, o prazer, capaz de descontrair o músculo enrijecido, trazia sempre a lembrança do evento agradável. A estrutura cerebral se adaptou, continuamente, a essa ordem sócio-genética: polaridade entre prazer e dor, como o caminho mantenedor da vida.
O castigo, necessariamente carregado de sofrimento, imposto pelo homem ou pela divindade, nos espaços sagrado e profano, está ligado à obediência a qualquer preço. O medo, advindo da ameaça ou da dor física, passou a ser o limite de cada pessoa, expresso no alarma dos sentidos violentados, do permitido e do proibido.
O arcabouço da dor física na herança sócio-genética, transposto para o sofrimento coletivo, moldou a dor histórica. A coesão do grupo atingido é reforçada ao identificar as causas e, assim, orientar, através das linguagens, o caminho para eliminá‑la da ordem social.
A categoria denominada dor histórica é o grito humano pela vida, liberdade, saúde, conforto, dignidade, paz e ruptura das correntes que prendem o homem à tirania dos outros homens e dos deuses. É a razão por que sempre existiu a procura de uma ética na conduta humana, ligada à sobrevivência comum, forçando a melhor atenção à saúde pessoal e coletiva, registrada nos códigos de postura, presente desde o Código de Hammurabi e nos livros sagrados de todas as expressões de religiosidade.
A ficção do sagrado como mecanismo biológico para amenizar a dor, imponderável em si mesma, encontrou unissonância no brado dos espoliados sem território e alimento para sobreviver, sempre mais doentes, morrendo precocemente,
O medo da dor fora de controle e da morte prematura forjou nas mentalidades a permanente atenção à dor histórica, estruturando a consciência da proteção pura, montada na determinação genética. É possível que o gradativo conhecimento da dor histórica tenha se processado na justa medida em que as coisas em si se converteram em coisas para nós, ou seja, o desconhecido passou a ser conhecido com o objetivo de viver mais com menos dor. As doenças, especialmente as das epidemias fora de controle, foram resgatadas da tutela divina e entendidas como parte significativa da dor histórica.

Assim, é possível compreender por que a partir do momento em que determinada sociedade sente o rigor insuportável imposto pela dor histórica, comprometendo a sobrevivência dos membros, se reorganiza para enfrentar e modificar os fatores determinantes.