João Bosco Botelho
É possível compreender a fantástica relação
entre as linguagens e o nascer da consciência em si mesmo, diferenciando o
cérebro da mente entrelaçando a natureza, o social e a História. Esse conjunto
complexo colocou o homem e a mulher numa condição singular e difícil: sobreviver
com menos dor e mais prazer – consciência em si – mantendo a diversidade das
linguagens.
Após a certeza de poderem desfrutar de vida cada
vez mais confortável, homens e mulheres expressam continuamente, a
inconformidade com a dor, o desconforto. Sendo mais inteligentes, após a morte
não poderiam ter a mesmo destino dos outros animais. Tornou-se imperativo
também estruturar o conforto após a morte. Mas, não para todos! Somente para os
aliados e os concordantes com a ordem teriam um repouso perfeito depois da vida.
Desde o passado distante, as mudanças
operadas no corpo, causando a angústia da deformidade dolorosa, eram as
primeiras evitadas. A barriga eviscerada no acidente de caça ou nas disputas
pela liderança ligavam a dor e a morte ao mundo temido. Por outro lado, o
prazer, capaz de descontrair o músculo enrijecido, trazia sempre a lembrança do
evento agradável. A estrutura cerebral se adaptou, continuamente, a essa ordem
sócio-genética: polaridade entre prazer e dor, como o caminho mantenedor da
vida.
O castigo, necessariamente carregado de
sofrimento, imposto pelo homem ou pela divindade, nos espaços sagrado e profano,
está ligado à obediência a qualquer preço. O medo, advindo da ameaça ou da dor
física, passou a ser o limite de cada pessoa, expresso no alarma dos sentidos
violentados, do permitido e do proibido.
O arcabouço da dor física na herança
sócio-genética, transposto para o sofrimento coletivo, moldou a dor histórica. A
coesão do grupo atingido é reforçada ao identificar as causas e, assim, orientar,
através das linguagens, o caminho para eliminá‑la da ordem social.
A categoria denominada dor histórica é o
grito humano pela vida, liberdade, saúde, conforto, dignidade, paz e ruptura
das correntes que prendem o homem à tirania dos outros homens e dos deuses. É a
razão por que sempre existiu a procura de uma ética na conduta humana, ligada à
sobrevivência comum, forçando a melhor atenção à saúde pessoal e coletiva, registrada
nos códigos de postura, presente desde o Código de Hammurabi e nos livros
sagrados de todas as expressões de religiosidade.
A ficção do sagrado como mecanismo biológico
para amenizar a dor, imponderável em si mesma, encontrou unissonância no brado
dos espoliados sem território e alimento para sobreviver, sempre mais doentes,
morrendo precocemente,
O
medo da dor fora de controle e da morte prematura forjou nas mentalidades a
permanente atenção à dor histórica, estruturando a consciência da proteção pura,
montada na determinação genética. É possível que o gradativo conhecimento da
dor histórica tenha se processado na justa medida em que as coisas em si se
converteram em coisas para nós, ou seja, o desconhecido passou a ser conhecido
com o objetivo de viver mais com menos dor. As doenças, especialmente as das
epidemias fora de controle, foram resgatadas da tutela divina e entendidas como
parte significativa da dor histórica.
Assim,
é possível compreender por que a partir do momento em que determinada sociedade
sente o rigor insuportável imposto pela dor histórica, comprometendo a
sobrevivência dos membros, se reorganiza para enfrentar e modificar os fatores
determinantes.