Amigos do Fingidor

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Adrino Aragão: a grandeza do minimalismo na literatura 3/3


Zemaria Pinto

Caderno do escritor

Falei da árvore e dos frutos maturados. Pouco resta para falar desse fruto novo (novo, mas não verde) que é o livro Caderno do escritor, onde Adrino Aragão exercita, de modo ainda mais radical, o conto minimalista, não importa o nome que damos a ele. São 116 contos, mais um bônus sobre o qual falarei mais adiante.

Espelho meu, dizei-me: qual desses dois sou eu?[1]

Uma frase em uma linha, duas orações e nove palavras. Isto é um nanoconto de Adrino Aragão.

Vamos analisá-lo sumariamente. Em cada uma das orações, Adrino recupera alguns séculos de tradições literárias. “Espelho meu” é a clássica fala da madrasta de Branca de Neve, narrativa originária da tradição oral alemã, provavelmente da Idade Média, e compilada pelos irmãos Grimm na primeira metade do século XIX. A segunda frase – qual desses dois sou eu? – é a expressão profunda da figura literária chamada “duplo”, expressa, para melhor entendimento, pela fórmula “eu = outro”. Ao defrontar-se com o espelho e fazer a pergunta, o narrador-personagem remete-nos a Jorge Luis Borges, uma influência confessa na obra de Adrino Aragão. Mas isso é pouco. Há mais de dois mil e duzentos anos, o romano Plauto já brincava com essa figura em Anfitrião. Mas não nos alonguemos, isto é apenas uma apresentação, não uma tese.

Alguns contos parecem ser a conclusão de uma narrativa mais longa. Cabe ao leitor montar a história anterior. Um exemplo:

Há uma dor ácida de profunda solidão por toda a quitinete, desde que ela me deixou. Acordo (acordo?) no meio da noite, não sei que rumo tomar: você não sabe o que é o amor de um velho apaixonado[2].

Alguns contos não escondem que são poemas, como neste autêntico haicai:

Trégua na mata:
o grito do acauã
esfacela o silêncio[3].

A metalinguagem é tema recorrente, como demonstrado por Joaquim Branco, na obra de Adrino Aragão. E não poderia ser diferente neste livro, onde vários contos são construídos a partir do tensionamento entre o narrador e a narrativa. Este conto de sete palavras poderia ser inserido na parte inicial deste trabalho, onde tentamos definir o conto enquanto gênero literário:

O conto não é ponto final: é interrogação[4].

O bônus a que me referi anteriormente é um conto chamado “Velho Catuxo”, apresentado em três versões. E mais não direi para não estragar a surpresa.

Poderia falar muito mais sobre este pequeno grande livro, que confirma a assertiva de Bachelard: “a miniatura é uma das moradas da grandeza”[5]. Poderia citar exemplos da sensualidade que penetra suavemente vários contos do livro... Poderia falar das personagens do povo, naturalmente anônimas: o homem rico e generoso que foi parar no asilo de velhos desamparados, a menina pobre que deu o golpe do baú, o jogador de futebol vencido pelas drogas, a Nega Charuto no céu... Não. Leiam e releiam e descubram esse universo mínimo de Adrino Aragão, contido nesta casca de noz que é o Caderno do escritor e vão compreender porque o poeta e pintor Fernando Abritta, que ilustrou o livro, dedicou-lhe estas enigmáticas palavras:

Adrino escreve como um menino que, munido de uma atiradeira, vai acertando as lâmpadas acesas que iluminam o cotidiano e, ao quebrar essas certezas, faz com que a gente enxergue um pouco melhor[6].

Adrino, meu velho, aceite o meu abraço fraterno por mais esta façanha.




[1] Obra citada: p. 56.
[2] Obra citada: p. 18.
[3] Obra citada: p. 100.
[4] Obra citada: p. 126.
[5] In: A poética do espaço (São Paulo: Nova Cultural, 1988), p. 210.
[6] 4ª capa do livro Cadernos do escritor.