Amigos do Fingidor

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Lábios que beijei 32


Zemaria Pinto

Alice



Como gerente de banco, eu conheci todo tipo de gente. Alice foi a mais estranha, numa escala de um para mil: ainda hoje tenho pesadelos com ela, um nome sem rosto que me infligiu um estigma na memória... Em uma manhã chuvosa, atendi ao telefone uma moça que buscava informar-se sobre operações ordinárias. Sua voz era rouca, jovial e vivaz, e, de repente, vi-me envolvido em uma conversa que há muito extrapolara o meramente profissional. Trocávamos informações sobre gostos comuns, preferências mútuas. Sugeri que conversássemos mais tarde. Ela não quis me dar seu número, disse que ligaria depois do expediente externo. Era uma situação comum: casada, ou algo parecido, ela mandava no jogo, sem expor-se a riscos. Naquela tarde, entretanto, nada aconteceu. Dias passados, já nem lembrava mais de Alice, ela ligou-me. A conversa estendeu-se por mais de uma hora. Alice era desinibida e talvez até um pouco atrevida em suas posições. Opinava sobre tudo – artes, política, esportes – e era muito firme em suas convicções. Quando eu disse que era casado, ela soltou uma gargalhada: – Até quando? No dia seguinte, ela voltou a ligar, para mais uma longa conversa. Aos poucos, percebi que aquele desembaraço escondia a mais amarga solidão. Mas ela não falava nada sobre sua vida pessoal. Dizia que quando nos encontrássemos eu ficaria sabendo de tudo sobre ela. As ligações continuaram diariamente, durante três semanas, ela sempre se esquivando de um encontro. Nos finais de semana, sentia falta de Alice, de sua voz sensual e moleca. Até que ela cedeu: marcamos um encontro para o anoitecer de sexta-feira. Trocaria o sagrado horário da cerveja com os amigos para conhecer de perto aquela mulher cuja voz me seduzia. Fui até o coreto da Praça da Polícia; esperei cerca de uma hora e meia. Alice não deu o ar de sua graça. Na segunda-feira, minha ânsia foi atendida com o toque do telefone no horário de costume: – Você não falou comigo... – Como, se você não apareceu? Fiquei feito um idiota, no coreto, vendo as pessoas passarem. Nem sequer me olhavam, tão apressadas. Além de mim, só uma moça paraplégica, levada por uma senhora de idade, estava no local. Aliás, eu saí e ela ficou... Nesse momento, percebi um “clic” do outro lado da linha. E nunca mais ouvi a enigmática voz de Alice.