Amigos do Fingidor

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Adrino Aragão: a grandeza do minimalismo na literatura 2/3


Zemaria Pinto

O conto à meia-luz

O professor Joaquim Branco trabalha com três livros de Adrino Aragão: Inquietação de um feto, Tigre no espelho e Conto, não-conto & outras inquietações. Três momentos diferentes do autor, três fases distintas de uma mesma obra: o jovem, o homem maduro, o mestre.

De Inquietação de um feto, Joaquim Branco destaca “o poético na confluência da prosa”[1]: de fato, Adrino Aragão opta pelo afastamento total do realismo que minava a contística amazonense e constrói pequenas narrativas onde a linguagem transita, sem nenhum pudor, entre o mito e o místico: “Voo de Ícaro”, “Invenção”, “Rosa vigiada”, “Filho”, “O afogado”, são contos que, nas palavras de Arthur Engrácio, sabiamente recuperadas por Joaquim Branco, “além de invadirem o terreno do fantástico, do mistério e do absurdo, tocam de perto o poético.”[2] Para ilustrar sua tese, Engrácio transforma os dois parágrafos, de cinco linhas cada, do conto “Filho” em um poema, de duas estrofes, com sete versos cada, “com resultados surpreendentes”:

Tens as vestes esfarrapadas, meu filho.
Teus caminhos são tortuosos.
Teus pés estão feridos e o corpo lanhado de espinhos.
Te perdeste na procura do caminho
onde poucos estiveram.
O cavaleiro da estrada quis punir-te;
foste poupado.

Vem, meu filho.
Vou cobrir a nudez de teu corpo cansado.
Do cordeiro e do leão fiei tuas vestes.
E nas três varas de bambu
sustentarás teu corpo.
Até que a espiga haja crescido viçosa
e teus filhos estejam alimentados[3].
   
Em Tigre no espelho, Joaquim Branco ressalta “o uso da intertextualidade, da metalinguagem e o enfrentamento do ‘outro’, presentes em quase todo o percurso narrativo do livro, preparando o terreno que vai se tornar a própria substância da ficção”[4].

De fato, usando referências que fazem pontes entre Edgar Allan Poe e Franz Kafka, Guimarães Rosa e Ernest Hemingway, Adrino Aragão constrói um labirinto borgeano onde em cada passagem questiona-se o próprio fazer literário, tal como ensinara o onipresente Jorge Luis Borges. Joaquim Branco diz que, valendo-se do entrelaçamento de textos e personagens diversos, e de uma linguagem adstrita ao realismo fantástico, em Adrino “a mímese se realiza predominantemente através de processos metalinguísticos”[5], ao que eu acrescentaria o embate consigo mesmo (o outro, o espelho), usando a literatura para desmistificar a si mesma, como neste fragmento, extraído de “Anotações para um conto”:

Que diabo! Um escritor não pode ficar tanto tempo sem escrever. Por mais que me esforce não consigo escrever nada. Nem um conto sequer. O último trabalho como que me sugou totalmente. Decidi não ficar esperando pela inspiração e tentei desenvolver algumas ideias mas não deu certo. Só consigo escrever impulsionado por uma força interior me sufocando, gritando para sair[6].  

Em 1999, escrevi um breve e despretensioso ensaio sobre Tigre no espelho, onde observo que o tema central do livro é a problematização do ato de criar, de fazer arte[7]. Esse tema está presente em dez dos doze contos do livro – que, por sinal, não se enquadram no escopo restrito da obra de Joaquim Branco: os mini, micro ou nanocontos. Mas é exatamente esse questionamento recorrente que interessa ao crítico, antes de chegar à grandeza das miniaturas de Conto, não-conto & outras inquietações, o cerne de sua pesquisa.

Nesse livro, Joaquim Branco anota que “se concentra a maior força criativa do autor, que consegue em poucas linhas, descobrir – no sentido de abrir, levantar o véu – um universo de sugestões e vias para o leitor. Ali são demonstradas as relações entre o trágico e o cotidiano, remontando ao mitológico grego”[8]

Eu diria mais, pois Adrino Aragão, neste livro mais que em qualquer outro, assume um lado regionalista – mas não aquele ligado ao realismo-naturalismo: um regionalismo anterior, mítico, essencialmente amazônida. Aliás, nunca é demais repetir: “poucas literaturas têm uma retaguarda mitológica tão expressiva como a literatura amazonense; poucas literaturas têm o luxo de uma mitologia própria, cujas origens confundem-se com as várias etapas do desenvolvimento da humanidade”[9]. Como exemplo, o próprio Joaquim Branco cita o miniconto “encantamento”:

a canoa solitária descia de bubuia as águas barrentas do solimões. ao redor de chapéus de palha que flutuavam ao sabor da correnteza, o festim dos botos anunciava o encantamento de duas cunhãs do vilarejo[10].




[1] Obra citada: p. 62.
[2] Obra citada: p. 68.
[3] Obra citada, p. 68-69.
[4] Obra citada: p. 51.
[5] Obra citada: p. 53
[6] Tigre no espelho, p. 75.
[7] “Tigre no espelho”, in: Análise Literária das Obras do Vestibular 2000 (Manaus: EDUA, 1999).
[8] Obra citada: p. 80.
[9] Frases pinçadas do meu livro O conto no Amazonas (Manaus: Valer, 2011. p. 19).
[10] Obra citada: p. 75.