Amigos do Fingidor

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Historicidade da ética e a possibilidade de uma ética pré-social



João Bosco Botelho

É razoável pensar a Medicina e o Direito como partes fundamentais da construção cultural que acompanhou a ontogenia, voltados à valorização da vida em torno da ética e da moral estruturando os bons resultados: os agentes da Medicina controlando a dor e empurrando os limites da vida e os do Direto construindo mecanismos sociais e políticos para evitar a antijuricidade.

O alfabeto grego possui duas letras “e” longo = eta e o “e” curto = epsílon. Dessa forma, êthos com a letra eta significa: característica, modo habitual de se comportar; éthos com a letra épsilon, corriqueiro, costume, usual. O processo histórico linguístico impôs semelhança etimológica entre os dois termos: ambos estão vinculados à virtude. Talvez também por essa razão, no cotidiano, a ética oriunda da tradição grega tem caminhado ao lado da moral.

A palavra “moral” é de origem latina, “mores” significa “costume”, mas não qualquer costume, e sim estritamente aderido à virtude. Assim, Kant de modo genial caracterizou a ação moral, em caráter universal, plena de virtude e realizada, exclusivamente, por dever legalista, em respeito às leis.

Em muitas circunstâncias, essa característica universal da ação moral, citada por Kant, isto é, a busca incessante para que o comportamento humano estivesse sempre ao lado da virtude, independente do processo fiscalizador, ultrapassa as relações sociais em si mesmas. Não é impertinência pensar que esse desejo humano, desde um passado impossível de precisar, de valorizar a virtude como antagonismo ao vicio, seja um processo sócio-genético gerado ao longo da humanização, ligado à sobrevivência desde os ancestrais mais distantes.

Incontáveis culturas, nos quatro cantos do mundo, pelo menos desde os primeiros registros de natureza religiosa e laica, continuam lutando para instrumentalizar regras valorizando a ética junto da moral como características insubstituíveis e universais, como genialmente Kant descreveu, da condição humana.

Dessa forma, é possível articular um pensamento teórico entendendo esse conjunto como pré-social, isto é, inserido na herança genética, ao longo da ontogenia, resultando na existência de uma ou mais memórias-sócio-genéticas (MSGs) ligadas à valorização da virtude, da moral, da ética, como instrumentos para adequar a sobrevivência coletiva e superar os contrários que dissolvem sem reconstruir. Simultaneamente, essas MSGs também interferem na manifestação pessoal e coletiva do desprezo ao vício que corrompe e compromete a sobrevivência.

Esse conjunto organizador social presente nas MSGs da espécie humana, vinculado à sobrevivência, atado ao ajuste ético-moral, amparando a vida pessoal e coletiva claramente desprezando o vício (aqui compreendido como oposição ao ético-moral, à virtude) se manifesta socialmente por meio de categorias metamórficas, presentes nos cinco continentes, entre culturas que nunca mantiveram contato, amparando a sobrevivência pessoal e coletiva, com forte participação da Medicina e do Direito por meio de certas categorias metamórficas que trazem à memória sofrimentos coletivos, cujas repetições poderiam ser evitadas pela ética.

O fato de na atualidade ainda não haver identificação dos genes e das respectivas proteínas que ativam as MGSs, não invalida a construção teórica da existência da ética pré-social.

É difícil atribuir a incrível milenar busca da ética, virtude, do bem, do bom somente às relações sociais!