Amigos do Fingidor

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Retorno a Bósdio



Inácio Oliveira

Eu estava em Bósdio outra vez, a cidade permanecia exatamente igual como no dia em que eu partira. O rio que outra vez recuava deixando ver as pedras, as ruas esburacadas e os prédios coloniais que desafiavam o tempo; tudo permanecia igual como numa fotografia. O lento verão se arrastava pelas ruas. Do alto da praça dava pra ver o lago ao pé da serra, fiquei pensando que para aquela paisagem faltava apenas uma moldura. Sentei-me, acendi um cigarro e fiquei fumando, procurando não pensar na minha vida.
Um rapaz passou por mim, me encarou por um segundo, hesitou e veio falar comigo.
Você não é o Inácio Oliveira, o escritor?
Sim, acho que sim.
Cara, eu adoro seus livros.
Obrigado.
Ele parecia embaraçado, mas havia admiração em seu embaraço. Então fiz pose de escritor para ele. Ele disse que havia um coincidência incrível naquele encontro, que ele morava na mesma casa em que eu morei na minha juventude. Disse também que a coincidência era maior ainda porque ele mesmo era escritor, ou melhor, era um aprendiz de escritor. Mas disse aprendiz com um certo orgulho que eu achei comovente.
Você gostaria de rever a casa, ver se ela continua como antes? Garanto que pouca coisa mudou.
Não sei se gostaria de voltar lá depois de tanto tempo.
Ele insistiu, disse que me ofereceria uma bebida. Fazia tanto tempo que ninguém me reconhecia como escritor que a minha vaidade foi maior que a minha vontade de ficar sozinho, então aceitei o convite. Saímos caminhando pela rua estreita. Era quase noite, as luzes foram se acendendo uma a uma iluminando o casario. Paramos enfrente a casa onde eu havia nascido. Na minha memória a casa não era tão antiga, nem havia essas rachaduras que sobem até o teto.
Entre. Você deve ter muitas lembranças daqui, não?
Lembranças, lembranças. Sim. Um estoque delas.
O rapaz me ofereceu uma taça de Quinta do Morgado. Eu detestava aquele vinho barato, mas ele imaginava que isso me agradaria, afinal, em meus livros, os personagens estão sempre bebendo. Para não o frustrar saboreei o vinho demonstrando que era prazer a repugnância que eu sentia.
Então, sobre o que você escreve?
Rabisco alguns versos, escrevo pensamentos. Gosto de escrever crônicas também, mas aqui não temos muito assunto, nada acontece.
Mas este é um tema maravilhoso, o tema da cidade onde nada acontece. Você devia escrever sobre isso.
Não sei se é bom o que eu escrevo, não sei se sou um bom escritor.
É claro que você não é um bom escritor, você está apenas começando. É bom que seja ruim.
Uma moça ruiva entrou na sala. Usava um short jeans rasgado e uma blusa à moda de espartilho que sufocava os seios. Ela disse olá e eu pude ver um piercing na sua língua, virou-se para beijar o rapaz ao meu lado e vi três borboletas tatuadas nas suas costas. O doce do vinho e a nostalgia daquela casa me fizeram pensar em um antigo amor.
Ele me apresentou sua namorada, mas ela não pareceu impressionada de conhecer um escritor. Apenas disse.
Você é o segundo escritor que eu conheço.
Eu acompanhei o casal até um barzinho que ficava no cais. Eles tinham a urgência de viver que há naqueles que são jovens. A brisa que vinha do rio brincava com os cabelos da moça ruiva. De repente, vê-los junto me encheu de melancolia, pois percebi o quanto aquela cena era frágil. Deu vontade de dizer para a moça ruiva. Esse rapaz vai partir seu coração, mas isso era um clichê e um escritor como eu jamais diria um clichê como esse. Deu vontade de dizer também para o rapaz. Vá embora daqui, não perca tempo com esta cidade, ela nada poderá lhe oferecer. Mas eu não havia ido a Bósdio dar conselhos para ninguém.