Amigos do Fingidor

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

A poesia é necessária?



Coplas de virgo
Anibal Beça (1946-2009)



Há um cheiro de angústia nos teus olhos
amputado no meio desta sala.
E este mistério basta-se em silêncio
apascentando os demos desta noite.

E é assim que eu não querendo ver eu vejo
madeira tosca a se rachar no tempo
os caules duros tão particulares
reconstruídos no covão das horas.

Pois que do tempo bebo alimentando
a tua singular fisionomia.
Aquela mesma que ficou plantada
de grãos e pelos rubra arquitetura.

E repousei caído em teus desígnios
e a água não era mais a mesma água
e a praia desnudava-se dos olhos
de ter e ver o verão do teu corpo.

E tua geografia era uma ilha
relva fresca de brisa amanhecida
que águas do meu instinto roçagavam
acordando gaivotas no teu ventre.

E éramos sós, o voo da paisagem
em duas asas alargando a noite
e displicentes palmilhamos rastros
e nos perdemos na linguagem única.

Amarantíssimo ansiar de chamas
fuga fugaz em tempo de equinócio
onde o dia e a noite são no avesso
a própria conjunção dos girassóis.

Que vibrem as cigarras de setembro
instante de pálpebras frementes
que o nosso alumbramento encadeado
seja o elo perene do silêncio.

Ah, duração de gozo interminável
onde o tempo é objeto sem valor
pois o moto maior de todo amante
é um antigo relógio sem ponteiros.

Ah, o lobo da memória me assaltando
a devorar auroras e crepúsculos
mas me salva este mar da lua espelho
onde liberto sou e recomeço.