Amigos do Fingidor

quinta-feira, 12 de março de 2020

A poesia é necessária?


O Solo dos utensílios
(em doze acordes cifrados)
        Anibal Beça (1946-2009)

Para o poeta Zemaria Pinto



No raso chão do convívio
as coisas da casa cosem
na costura dos minutos
um figurino ordenado.

Talhado traço exclusivo
para os olhos de quem veste
as coisas ganham lugar
no corpo de quem as usa.

No espaço entronizadas
regidas na duração
de seda comum do tempo
sela de um baio ordinário.

Há coisas que se cavalgam
sem as rédeas do comando
outras há de trote breve
encilhadas no seu trato.

As mais simples entre tantas
entretanto são tamanhas
na grandeza utilitária
servis ao seu mandatário.

Serviçais mas não escravas
pois têm vontade liberta
há dias nos seus recatos
regados de teimosia.

E se negam às tarefas
contrariando a mesmice
de repetir dia a dia
a previsão das agendas.

É esse o dia da caça:
a água quente que esfria
o barbear postergado
no ferrolho da desdita.

Mas há que reconhecer
dentre aquelas mais fiéis
as do amparo solitário
no voo das confidências.

Aquelas que escutam penas
acolchoando a memória
e que nunca recriminam
nossos pecados diários.

As que servem à magia
como aquela escrivaninha
repouso de muitos versos
emplumando garças brancas.

Quem tem os olhos de ver
as mais simples e ordinárias
ganham mimo especial
nesse afago de palavras.