Amigos do Fingidor

terça-feira, 14 de abril de 2020

Ciclo da vida



Pedro Lucas Lindoso


Em época de quarentena liguei para minha querida tia Idalina. Estava preocupado em saber se estava se comportando. Ela me disse estar um pouco entediada. Mas o tédio havia sido quebrado ontem. Eis o seu relato:
– Imagine que ontem, na boquinha da noite, como se dizia antigamente, um casal que mora no apartamento vizinho, começou a brigar. Um horror. O rapaz dizia não aguentar mais as exigências e as manias da esposa. As crianças em casa choravam e gritavam. O marido ameaçava sair de casa. A esposa, às beiras da histeria, dizia que ia pular da janela. Tive que me meter. Afinal eles são muito simpáticos comigo.
Fiquei muito preocupado com o que poderia ter acontecido. Ademais, tia Idalina é do grupo de risco. Diz que só tem 70. Uma pessoa que foi ao funeral de Carmem Miranda, em agosto de 1955, não tem menos do que 80 anos.
Ela mesma me contou que Carmem Miranda faleceu em Los Angeles. Mas o corpo embalsamado foi trasladado para o Rio de Janeiro. Milhares de pessoas acompanharam o enterro. E ela estava lá. O ano era 1955, repita-se.
Mas voltando à confusão de ontem. Ela apertou a campainha do vizinho, pegou as duas crianças e levou para o apartamento dela. Um risco. Segundo o Ministério da Saúde, os velhinhos têm que ficar longe das crianças.
Mas Idalina desobedeceu às normas de quarentena. Acalmou as crianças. Os gritos continuaram por alguns instantes. Depois tudo silenciou. Um silêncio sepulcral. A essa altura as crianças estavam calmas, assistiam televisão e tomavam sorvete.
Idalina preparou uma canja para as duas garotinhas. Deu banho. Vestiu-as com umas roupinhas que alguém esquecera por lá. Não achou conveniente voltar ao apartamento dos pais. No que estava certa. Se uma coisa que Idalina não tem é leseira.
Lá pelas dez da noite, as garotinhas já dormiam no sofá quando os pais vieram buscá-las. Ela que conta:
– Os dois, com cara de paisagem, relaxados, pediram desculpas, pegaram as crianças e foram para casa.
No final dessa quarentena, daqui a nove meses, vai nascer muito menino por aí. É o ciclo da vida. Uns vão morrer outros vão nascer.