Amigos do Fingidor

sexta-feira, 18 de junho de 2021

A bomba

L. Ruas

 

A peste grassara na cidade. Era uma pequena cidade de mais de oito mil habitantes, no máximo.

Em primeiro lugar foram tomadas todas as medidas profiláticas. A cidade foi isolada e ninguém podia sair nem entrar a não ser os organismos oficiais encarregados do abastecimento e da assistência médico-hospitalar.

Sem qualquer outro informe mais preciso, cumpre dizer que a peste se caracterizava por uma inflamação cerebral, que provocava nos doentes uma série de alucinações, tendo como consequência final e orgânica um debilitamento que levava fatalmente à morte. O mais interessante é que nas primeiras semanas os vitimados não apresentavam qualquer anormalidade, daí o primeiro caso ter sido aceito por muitos como coisa verdadeira. Tratava-se de um cidadão que se dizia uma espécie de salvador da pátria, esta espécie, que, aliás, é muito difundida.

Devemos acrescentar, também, que todos os habitantes daquela cidade estavam irremediavelmente condenados e, mais cedo ou mais tarde, todos contrairiam o vírus, embora, segundo os médicos, não se pudesse calcular quando isso poderia suceder. O contágio em muitos casos se dava lentamente.

Diante desse estado de coisas as autoridades oficiais decidiram exterminar aquela cidade. Segundo os moralistas oficiais isto seria permitido em razão do bem comum, pois o vírus poderia ser transmitido a outras cidades vizinhas. E o mal terminaria invadindo toda a nação. Discussão pra lá, discussão pra cá, o Departamento de Defesa apresentou uma sugestão que foi por todos aceita. O Departamento se encontrava em fase de experiências com um novo tipo de bomba e segundo os técnicos faltaria um último teste, a saber, a respeito do raio de ação. O Departamento de Saúde por sua vez chegou à conclusão de que as irradiações provocadas pela explosão poderiam, talvez, purificar a atmosfera e assim debelar a peste para sempre.

E assim as circunvizinhanças da cidade foram escolhidas para servir de área de experiência do Departamento de Saúde.

O plano de experiência estava dividido em duas etapas. O primeiro consistia numa preparação psicológica do povo, para impedir qualquer movimento de pânico. E a segunda consistiria na execução técnica ou propriamente na explosão.

 

Imediatamente começou a realização da primeira etapa. Os dois jornais da cidade e a estação difusora iniciaram uma campanha de esclarecimento público. O povo não deveria dar atenção àqueles que desejavam espalhar o pânico. A situação era normal. Tudo estava em ordem e não se apresentava qualquer ameaça à segurança do povo. Tratava-se, apenas, de uma experiência científica que traria benefícios enormes à nação. O povo deveria, pelo bem da pátria suportar, com paciência patriótica alguns sacrifícios que seriam exigidos para o bom êxito da experiência. Não é necessário dizer que muitos não acreditaram na campanha psicológica, mas, a bem da verdade, é preciso dizer que a maioria dos habitantes a aceitaram com tranquilidade. Não mudaram seus hábitos. Todos continuaram a ir ao barbeiro, tomar sua cervejinha, bater um papo na esquina ou sentados em suas cadeiras de embalo, à noite, nas calçadas. Havia, também, os conformados. “Que adianta, diziam, que adianta perder cabeça se ninguém sabe o dia da explosão?”

E ninguém sabia mesmo. O dia da explosão foi guardado dentro do máximo segredo.

Mas a bomba explodiu, um dia. E da cidadezinha resta, apenas, esta notícia insignificante que trago, hoje, aos meus possíveis e reduzidos leitores.

 

(A Gazeta, 2 setembro 1963)

Pesquisa: Roberto Mendonça