Amigos do Fingidor

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

“Cabelos Arrepiados” e um novo Teatro em Manaus

 Jorge Bandeira

 

A sessão tão esperada neste período ainda de extremos cuidados em decorrência da pandemia de Covid-19. Eu já não aguentava esperar tanto tempo para assistir ao Teatro em sua única forma de autenticidade, o elemento da realidade, onde eu consigo realmente ter a visão e a emoção adequadas de um trabalho artístico nessa seara do Teatro.

O texto de Karen Acioly é o condutor desta possibilidade de sonho, carregado com um bom empenho pelos atuantes e técnicos desta narrativa cênica, no aconchegante Teatro Buia, a cobra que serpenteia este novo palco na cidade da cobra-grande.

É um musical carregado de elementos de um barroco enviesado pelo elemento de um certo goticismo, com referências ao trabalho de Tim Burton e incluo também o Edward Gorey para tornar este caldo de influências mais artístico ainda. É notório que o figurino assinado por Maria Hagge confere ao espetáculo um cromatismo de lúdico e sonho, onde os pesadelos também podem habitar. A lógica dos sonhos não é cartesiana, portanto, falar dos personagens de Cabelos Arrepiados nos tangencia para direções múltiplas, onde a circularidade do palco giratório em espiral, que gira sempre em sentido anti-horário ao espectador, seja o simbolismo mais direto de que estes sonhos atravessam a alma do público através da história de cada um dos personagens deste Teatro de sonhos. Alguém aí lembrou também de Neil Gaiman e de Sandman?

A direção de Tércio Silva é primorosa, concisa, econômica e possui um charme asséptico, o que torna o espetáculo agradável e dinâmico, apesar das mudanças de quadro serem simples, onde cada personagem é apresentado ao público de forma objetiva. A iluminação e o cenário seguem a linha da economia, sem excessos, e tudo se equilibra, inclusive os bonecos que são a extensão dos sonhos das personagens, suas almas altaneiras, seus pensamentos em expansão. A operação técnica e direção de palco de Ricardo Peixoto é feita com esmero, zelo necessário para que o espetáculo aconteça de forma a não criar nenhum ruído entre uma cena ou outra. Tudo de forma discreta, para que a trama e os sonhos sejam ofertados ao espectador da melhor maneira possível.

A execução musical é orgânica, sendo Jeferson Mariano um exímio tecladista, e é muito bom quando a música fica em equilíbrio com as cenas, onde o quebra-cabeças musical também é a cena,

Tico voa livre em seus sonhos, Hagge confere vida em sua manipulação solo do boneco. A meia se transmuta, tudo gira, as sombras se enaltecem. O passeio de Tico é vertiginoso. Davi Lopes é um ator que canta e representa com precisão, apesar de sua voz ficar em tom muito alto em alguns momentos, mas nada que prejudique a encenação.

Cora é da esfera do tédio, Maria Hagge toca guitarra num timbre minimalista, de poucos e eficientes acordes, e aqui destaco a primícia fundamental de todo musical e a qual Cabelos Arrepiados segue à risca: a música também é uma personagem, o personagem é moldado também pela música.

Flora e Dora, as gêmeas, num dilema de paixões com o Dr. X, o brilhante Davi Lopes, na passagem de humor da trama, Hagge e Magda Loiana conseguem prender a atenção do público de forma natural, sem exageros na interpretação, e isso faz o espetáculo não cansar o público, ao longo dos 55 minutos da encenação.

Clara é a emblemática personagem do momento mais delicado do trabalho, no qual a mão do diretor soube conduzir toda a gravidade da situação num diapasão de sutileza, extremamente necessária num tema que perpassa medo e horror. O espectro monstruoso entra em cena mas....

(Aqui entra um metatexto ou metacrítica.)

Nesta cena de bela execução, com 35 minutos já executados de Cabelos Arrepiados, quando o espectro feito com todo vigor e esmero por Wagner Farias entra em cena, eis que entram no Teatro duas espectadoras!!!! Fiquei sem entender... sentaram nas cadeiras à minha frente, mas infelizmente tiraram minha atenção da cena, belíssima cena com velas, alargamento do espectro, coreografia bem executada... enfim, foi uma entrada inoportuna, o que pode prejudicar o bom andamento de qualquer trama teatral, pois o público está concentrado na cena e qualquer ruído ou circunstância que tire o seu foco da cena pode fazer com que o sonho teatral se evapore automaticamente. Fica minha observação para que os atrasos do público sejam evitados.

Ciro fecha a trama com seu sonhar e experiências, o inventor em seu mundo de sonhos, onde o ladrão de sonhos JMB, sim, ele mesmo, o medo e maus pensamentos entram em cena e tornam Cabelos Arrepiados também um ato político. Aqui o panfleto é de necessidade urgente, pois a arte de forma geral tem sofrido com este governo, aliás, governos. A expulsão do mito considerei até tímida, mas valeu, pois ele foi expulso daquele sonho de Ciro, interpretado pelo ator Gabriel Anjos, de maneira eficaz. Aliás, o elenco está muito bem em cena.

Sonhar com a volta do Teatro Real já é possível em Manaus. Cabelos Arrepiados traz este sonho até você.


Texto de Karen Acioly e direção de Tércio Silva.
Último final de semana.
Dica: garanta seu ingresso, comprando antecipadamente, nos canais acima.