Jorge Bandeira
A
sessão tão esperada neste período ainda de extremos cuidados em decorrência da
pandemia de Covid-19. Eu já não aguentava esperar tanto tempo para assistir ao
Teatro em sua única forma de autenticidade, o elemento da realidade, onde eu
consigo realmente ter a visão e a emoção adequadas de um trabalho artístico
nessa seara do Teatro.
O texto
de Karen Acioly é o condutor desta possibilidade de sonho, carregado com um bom
empenho pelos atuantes e técnicos desta narrativa cênica, no aconchegante
Teatro Buia, a cobra que serpenteia este novo palco na cidade da cobra-grande.
É um
musical carregado de elementos de um barroco enviesado pelo elemento de um
certo goticismo, com referências ao trabalho de Tim Burton e incluo também o
Edward Gorey para tornar este caldo de influências mais artístico ainda. É
notório que o figurino assinado por Maria Hagge confere ao espetáculo um
cromatismo de lúdico e sonho, onde os pesadelos também podem habitar. A lógica dos
sonhos não é cartesiana, portanto, falar dos personagens de Cabelos
Arrepiados nos tangencia para direções múltiplas, onde a circularidade do
palco giratório em espiral, que gira sempre em sentido anti-horário ao
espectador, seja o simbolismo mais direto de que estes sonhos atravessam a alma
do público através da história de cada um dos personagens deste Teatro de
sonhos. Alguém aí lembrou também de Neil Gaiman e de Sandman?
A
direção de Tércio Silva é primorosa, concisa, econômica e possui um charme asséptico,
o que torna o espetáculo agradável e dinâmico, apesar das mudanças de quadro
serem simples, onde cada personagem é apresentado ao público de forma objetiva.
A iluminação e o cenário seguem a linha da economia, sem excessos, e tudo se
equilibra, inclusive os bonecos que são a extensão dos sonhos das personagens,
suas almas altaneiras, seus pensamentos em expansão. A operação técnica e
direção de palco de Ricardo Peixoto é feita com esmero, zelo necessário para
que o espetáculo aconteça de forma a não criar nenhum ruído entre uma cena ou
outra. Tudo de forma discreta, para que a trama e os sonhos sejam ofertados ao
espectador da melhor maneira possível.
A
execução musical é orgânica, sendo Jeferson Mariano um exímio tecladista, e é
muito bom quando a música fica em equilíbrio com as cenas, onde o
quebra-cabeças musical também é a cena,
Tico
voa livre em seus sonhos, Hagge confere vida em sua manipulação solo do boneco.
A meia se transmuta, tudo gira, as sombras se enaltecem. O passeio de Tico é
vertiginoso. Davi Lopes é um ator que canta e representa com precisão, apesar
de sua voz ficar em tom muito alto em alguns momentos, mas nada que prejudique
a encenação.
Cora é
da esfera do tédio, Maria Hagge toca guitarra num timbre minimalista, de poucos
e eficientes acordes, e aqui destaco a primícia fundamental de todo musical e a
qual Cabelos Arrepiados segue à risca: a música também é uma personagem,
o personagem é moldado também pela música.
Flora e
Dora, as gêmeas, num dilema de paixões com o Dr. X, o brilhante Davi Lopes, na
passagem de humor da trama, Hagge e Magda Loiana conseguem prender a atenção do
público de forma natural, sem exageros na interpretação, e isso faz o
espetáculo não cansar o público, ao longo dos 55 minutos da encenação.
Clara é
a emblemática personagem do momento mais delicado do trabalho, no qual a mão do
diretor soube conduzir toda a gravidade da situação num diapasão de sutileza,
extremamente necessária num tema que perpassa medo e horror. O espectro
monstruoso entra em cena mas....
(Aqui
entra um metatexto ou metacrítica.)
Nesta
cena de bela execução, com 35 minutos já executados de Cabelos Arrepiados,
quando o espectro feito com todo vigor e esmero por Wagner Farias entra em cena,
eis que entram no Teatro duas espectadoras!!!! Fiquei sem entender... sentaram
nas cadeiras à minha frente, mas infelizmente tiraram minha atenção da cena,
belíssima cena com velas, alargamento do espectro, coreografia bem executada...
enfim, foi uma entrada inoportuna, o que pode prejudicar o bom andamento de
qualquer trama teatral, pois o público está concentrado na cena e qualquer
ruído ou circunstância que tire o seu foco da cena pode fazer com que o sonho
teatral se evapore automaticamente. Fica minha observação para que os atrasos
do público sejam evitados.
Ciro
fecha a trama com seu sonhar e experiências, o inventor em seu mundo de sonhos,
onde o ladrão de sonhos JMB, sim, ele mesmo, o medo e maus pensamentos entram
em cena e tornam Cabelos Arrepiados também um ato político. Aqui o
panfleto é de necessidade urgente, pois a arte de forma geral tem sofrido com
este governo, aliás, governos. A expulsão do mito considerei até tímida, mas
valeu, pois ele foi expulso daquele sonho de Ciro, interpretado pelo ator
Gabriel Anjos, de maneira eficaz. Aliás, o elenco está muito bem em cena.
Sonhar
com a volta do Teatro Real já é possível em Manaus. Cabelos Arrepiados
traz este sonho até você.
Texto de Karen Acioly e direção de Tércio Silva. Último final de semana. Dica: garanta seu ingresso, comprando antecipadamente, nos canais acima. |