Zemaria Pinto
Minha
avó, a quem eu chamava Mãe Velha, personagem recorrente nas minhas ficções,
disse-me, mais de uma vez – porque eu gostava de ouvi-la e sempre a provocava –
que sua vida era um “rosário de tristezas”. Nascida em 1904, atravessou a
adolescência ouvindo falar da guerra, que, chamada mundial, envolvia a todos e
a todos assombrava, sem distinções geográficas. Acabada a guerra, veio a gripe
espanhola. Ela dizia, e eu achava um exagero, que as pessoas “morriam como
moscas”, e ficavam nas ruas, até que fossem recolhidas e levadas para as covas
coletivas. Hoje, compreendo a expressão e penso: será que lhes faltava oxigênio?
Quando a espanhola se foi, ela já era uma jovem adulta, amadurecida à força. Parecia
que o mundo se acalmava, apesar de o Brasil ser um vespeiro político permanente,
entre golpes e contragolpes. Quando veio a segunda grande guerra, os filhos já
estavam crescidos – a caçula, minha mãe, tinha a mesma idade que ela quando
começara a guerra anterior. Foram mais seis anos de ameaças e incertezas. Mas a
guerra acabou e a vida seguiu em sua calha. Ficaram apenas as lembranças. No
interior da Amazônia, talvez pelo ambiente fantástico, entre o lendário e o
mítico, as memórias se engendram entre o superlativo e a hipérbole – e viram estórias,
literatura oral, crônicas.
Não
deixo de pensar na Mãe Velha a cada vez que ouço as notícias aterrorizantes
sobre a pandemia de coronavírus. O Brasil continua um caos. Aliás, o mundo é um
caos. A civilizada Europa, quem diria? E os Estados Unidos, então? Modelo em
tudo, virou o padrão do caos. O mundo em desconcerto, a vida em dissonância. Mas,
em tempo recorde, surgiu a esperança sob a forma de vacina, o que não aconteceu
com a espanhola, que se foi assim como chegou – do nada para o nada. Num tempo
de potencialização das comunicações, por meio das redes sociais – mais que
nunca, o mundo é uma aldeia, Mr. McLuhan – as histórias dessa crise são temas
de crônicas diárias, registros pulsantes da luta pela vida.
A crônica é o registro mais imediato, e literário, da história. E é no papel de cronista-historiador que Pedro Lucas Lindoso nos entrega este paradoxal Crônicas da pandemia. Paradoxal porque, doloroso e terno, Lindoso descola-se do sentimentalismo extremado – nem piegas nem raivoso – e desenha peças singelas e tocantes que nos dão a dimensão exata desse tumulto que se instalou em nosso cotidiano e não tem data certa para acabar. E sempre com um leve sorriso de esperança.
Algumas
personagens são recorrentes, como a netinha Maria Luísa, afastada, na primeira
onda, por quase cinco meses, do convívio dos avós. É comovente a pequena
perguntar “até quando?”. Pois nós, adultos, fazemos a mesma pergunta, Maria
Luísa, e assim como você, ainda não obtivemos resposta. Tia Idalina, cujas
crônicas já mereceram um livro próprio, com sabedoria, ensina, sem rodeios, a
forma preferencial de enfrentamento ao vírus: “fiquem em casa, e ponto final!”.
Outra personagem presente nas crônicas de Pedro é o Chaguinhas, advogado,
sempre cirúrgico em seus comentários. Ele também tem um recado: “ignorância
mata!”. Verdade. A ciência não pode ser menosprezada. Há quem creia que é a fé
que salva. Mas sem a ciência a fé perde força e razão.
Outras
personagens dão o ar de sua graça. Miss Manga, por exemplo, é de uma delicadeza
oriental. Morando na China, ela vê muito além da pandemia: “Pequim fica linda
na primavera!”. E tem a precavida Prima Zilá, fã de Cora Coralina, que
incorporou o parentesco ao nome e vê na adversidade da pandemia uma
oportunidade de expandir a poupança de toda uma vida. Mas, a luta maior é
sobreviver, ela sabe. E não poderia faltar a homenagem aos “heróis da pandemia”,
que lembra não apenas os abnegados profissionais da saúde, mas também os
professores e professoras do ensino fundamental. Justíssima homenagem.
A
pandemia mexeu com os hábitos de todos nós. Vivemos a era do “novo normal”, a
normalidade desse estado de exceção a que somos forçados, com toque de recolher
e tudo, lembrando os maus tempos das guerras. Por exemplo, usar máscara e
cumprimentar com os cotovelos ou com os punhos cerrados. Nada de “abraços e
beijinhos e carinhos sem ter fim”, como pedia o poeta. O olhar sensível de
Pedro Lucas Lindoso relaciona a manifestação de afeto à felicidade, indo buscar
entre os longínquos maoris, na Nova Zelândia, um exemplo de expressão física de
afeto que a pandemia colocou em suspenso: “as pessoas encostam suas testas e
esfregam a ponta dos narizes juntas”. Como estarão se cumprimentando os maoris?
Pedro recorda um costume muito brasileiro: passear de mãos dadas. “As mãos
transmitem energia”, ele lembra. Mas a pandemia nos impede de andar de mãos
dadas tanto quando nos proíbe o amistoso e afável aperto de mãos.
Crônicas
da pandemia é o
registro oportuno de um momento singular em nossas vidas. Entre a dor e a
ternura, Pedro Lucas Lindoso compôs, com sensibilidade e arte, um painel de
delicadezas, atenuando a dor geral e espargindo beleza e esperança neste “vale
de lágrimas” – expressão tomada emprestada de uma oração, de que Mãe Velha se
valia para definir nossa passagem por este sofrido planetinha azul. Como será o
mundo no pós-pandemia? Essa é uma pergunta que esperamos responder
coletivamente – e, de preferência, aglomerados sem temor – muito em breve.
Prefácio a Crônicas da Pandemia,
de Pedro Lucas Lindoso – Manaus: Palavra da Terra, 2021.
O livro pode ser adquirido – 30 reais, incluindo o frete – com o próprio autor:
(92) 99112 0257 ou pedrolindoso@yahoo.com.br