Amigos do Fingidor

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Crônicas da pandemia: entre a dor e a ternura

 Zemaria Pinto

 

Minha avó, a quem eu chamava Mãe Velha, personagem recorrente nas minhas ficções, disse-me, mais de uma vez – porque eu gostava de ouvi-la e sempre a provocava – que sua vida era um “rosário de tristezas”. Nascida em 1904, atravessou a adolescência ouvindo falar da guerra, que, chamada mundial, envolvia a todos e a todos assombrava, sem distinções geográficas. Acabada a guerra, veio a gripe espanhola. Ela dizia, e eu achava um exagero, que as pessoas “morriam como moscas”, e ficavam nas ruas, até que fossem recolhidas e levadas para as covas coletivas. Hoje, compreendo a expressão e penso: será que lhes faltava oxigênio? Quando a espanhola se foi, ela já era uma jovem adulta, amadurecida à força. Parecia que o mundo se acalmava, apesar de o Brasil ser um vespeiro político permanente, entre golpes e contragolpes. Quando veio a segunda grande guerra, os filhos já estavam crescidos – a caçula, minha mãe, tinha a mesma idade que ela quando começara a guerra anterior. Foram mais seis anos de ameaças e incertezas. Mas a guerra acabou e a vida seguiu em sua calha. Ficaram apenas as lembranças. No interior da Amazônia, talvez pelo ambiente fantástico, entre o lendário e o mítico, as memórias se engendram entre o superlativo e a hipérbole – e viram estórias, literatura oral, crônicas.

Não deixo de pensar na Mãe Velha a cada vez que ouço as notícias aterrorizantes sobre a pandemia de coronavírus. O Brasil continua um caos. Aliás, o mundo é um caos. A civilizada Europa, quem diria? E os Estados Unidos, então? Modelo em tudo, virou o padrão do caos. O mundo em desconcerto, a vida em dissonância. Mas, em tempo recorde, surgiu a esperança sob a forma de vacina, o que não aconteceu com a espanhola, que se foi assim como chegou – do nada para o nada. Num tempo de potencialização das comunicações, por meio das redes sociais – mais que nunca, o mundo é uma aldeia, Mr. McLuhan – as histórias dessa crise são temas de crônicas diárias, registros pulsantes da luta pela vida.  

A crônica é o registro mais imediato, e literário, da história. E é no papel de cronista-historiador que Pedro Lucas Lindoso nos entrega este paradoxal Crônicas da pandemia. Paradoxal porque, doloroso e terno, Lindoso descola-se do sentimentalismo extremado – nem piegas nem raivoso – e desenha peças singelas e tocantes que nos dão a dimensão exata desse tumulto que se instalou em nosso cotidiano e não tem data certa para acabar. E sempre com um leve sorriso de esperança.  

Algumas personagens são recorrentes, como a netinha Maria Luísa, afastada, na primeira onda, por quase cinco meses, do convívio dos avós. É comovente a pequena perguntar “até quando?”. Pois nós, adultos, fazemos a mesma pergunta, Maria Luísa, e assim como você, ainda não obtivemos resposta. Tia Idalina, cujas crônicas já mereceram um livro próprio, com sabedoria, ensina, sem rodeios, a forma preferencial de enfrentamento ao vírus: “fiquem em casa, e ponto final!”. Outra personagem presente nas crônicas de Pedro é o Chaguinhas, advogado, sempre cirúrgico em seus comentários. Ele também tem um recado: “ignorância mata!”. Verdade. A ciência não pode ser menosprezada. Há quem creia que é a fé que salva. Mas sem a ciência a fé perde força e razão.

Outras personagens dão o ar de sua graça. Miss Manga, por exemplo, é de uma delicadeza oriental. Morando na China, ela vê muito além da pandemia: “Pequim fica linda na primavera!”. E tem a precavida Prima Zilá, fã de Cora Coralina, que incorporou o parentesco ao nome e vê na adversidade da pandemia uma oportunidade de expandir a poupança de toda uma vida. Mas, a luta maior é sobreviver, ela sabe. E não poderia faltar a homenagem aos “heróis da pandemia”, que lembra não apenas os abnegados profissionais da saúde, mas também os professores e professoras do ensino fundamental. Justíssima homenagem.

A pandemia mexeu com os hábitos de todos nós. Vivemos a era do “novo normal”, a normalidade desse estado de exceção a que somos forçados, com toque de recolher e tudo, lembrando os maus tempos das guerras. Por exemplo, usar máscara e cumprimentar com os cotovelos ou com os punhos cerrados. Nada de “abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim”, como pedia o poeta. O olhar sensível de Pedro Lucas Lindoso relaciona a manifestação de afeto à felicidade, indo buscar entre os longínquos maoris, na Nova Zelândia, um exemplo de expressão física de afeto que a pandemia colocou em suspenso: “as pessoas encostam suas testas e esfregam a ponta dos narizes juntas”. Como estarão se cumprimentando os maoris? Pedro recorda um costume muito brasileiro: passear de mãos dadas. “As mãos transmitem energia”, ele lembra. Mas a pandemia nos impede de andar de mãos dadas tanto quando nos proíbe o amistoso e afável aperto de mãos.

Crônicas da pandemia é o registro oportuno de um momento singular em nossas vidas. Entre a dor e a ternura, Pedro Lucas Lindoso compôs, com sensibilidade e arte, um painel de delicadezas, atenuando a dor geral e espargindo beleza e esperança neste “vale de lágrimas” – expressão tomada emprestada de uma oração, de que Mãe Velha se valia para definir nossa passagem por este sofrido planetinha azul. Como será o mundo no pós-pandemia? Essa é uma pergunta que esperamos responder coletivamente – e, de preferência, aglomerados sem temor – muito em breve.

 

Prefácio a Crônicas da Pandemia,

de Pedro Lucas Lindoso – Manaus: Palavra da Terra, 2021.

O livro pode ser adquirido  30 reais, incluindo o frete  com o próprio autor:

(92) 99112 0257 ou pedrolindoso@yahoo.com.br