Amigos do Fingidor

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Relação de Carvajal: a história na confluência do mito

 

Zemaria Pinto

 

Há oito anos, por ocasião do XIII Congresso Internacional da ABRALIC, em Campina Grande–PB, apresentei a comunicação “Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação”, tomando por base a edição de 1941, traduzida por Cândido de Melo-Leitão.[1] Eu concluía dizendo que o Brasil e o Amazonas, em particular, deviam à memória de Carvajal uma nova tradução, “cotejada com outras obras de vulto que mantiveram uma relação dialógica” com o texto do dominicano estremenho.[2]

Esta edição da Relação do famosíssimo e muito poderoso rio chamado Marañón, organizada, traduzida e anotada de forma magistral pelo professor Auxiliomar Silva Ugarte, vem atender àquele apelo, suprindo uma lacuna que já se estendia por 80 anos. Baseado na versão de Gonzalo de Oviedo y Valdés – enquanto Melo-Leitão baseara-se na versão de Toríbio de Medina –, passamos a ter uma visão mais ampla do relato de Gaspar de Carvajal, posto que o tradutor não se limitou a simplesmente verter do espanhol clássico do século XVI para o português contemporâneo; antes, fez com que as duas versões dialogassem, entre si e com outros textos afins, enriquecendo não somente este trabalho, mas também aquele, de Melo-Leitão – hoje, uma preciosidade de bibliófilos. Para além da história e da linguística, trata-se de uma tradução cultural, um conceito que metaforiza os encontros culturais, preservando suas alteridades, sem a prevalência de visões que naturalmente se antagonizam.[3]

No sentido clássico da palavra – ato de relatar –, a Relação de Carvajal pode ter sido escrita no desenrolar dos acontecimentos, ao longo de nove meses, entre dezembro de 1541 e setembro de 1542. Esta suposição, se aceita, é mais “romanesca”, uma vez que coloca Frei Gaspar, com todas as suas atribulações, ainda com a responsabilidade de atualizar diariamente seu texto em desenvolvimento. Por outro lado, devemos considerar que, se assim o fizesse, dificilmente o dominicano escaparia da tentação da forma “diário”. De qualquer modo – ou no calor da luta cotidiana ou recuperando a memória para sistematizar a narrativa –, já no ano seguinte, após a conclusão da viagem, há notícias de relatos ligados à aventura comandada por Orellana, que provavelmente se baseiam em Carvajal.

 

Fundamentos. Testemunha ocular dos fatos narrados, Carvajal pretendia com seu texto mostrar que Francisco de Orellana não traíra Gonzalo Pizarro, enumerando os incidentes que resultaram numa aventura diversa do que fora planejado. A ira de Pizarro, e de muitos historiadores depois, era com o fato de que o acaso reservou a glória histórica ao subalterno, enquanto o comandante – ele, Pizarro – voltava para casa humilhado.

O texto de Carvajal tem três camadas, intercambiáveis entre si:

1 – Histórica: onde se registram os fatos ocorridos, especialmente após a separação da expedição em dois grupos, relatando a descida pelo rio Marañón até o mar;

2 – Religiosa: onde se observa que o dominicano Carvajal pontua sua narrativa com palavras de agradecimento e louvor a sua fé;

3 – Ideológica: a camada mais complexa, onde Carvajal pretende demonstrar a bravura e a lealdade de seu capitão; para tal, lança mão de artifícios que hoje reconhecemos como literários. A mescla desses recursos com a história revelou-se, com o tempo, um processo de mistificação que, mesmo apontado desde o início por seus críticos, encontrou guarida no imaginário da região.

Misturando história e literatura, num exercício de realismo maravilhoso, o texto culmina com a transposição do mito grego das amazonas para a região que, de tão marcada pela narrativa do dominicano, herdou-lhe o nome. São as primeiras representações da Amazônia, sob forma de relato histórico, arquitetadas ora num simulacro de fantasia literária, ora em clara mistificação.

 

Hiperbólico e maravilhoso. Para atingir o âmago do maravilhoso, o maravilhoso puro, Todorov identifica vários tipos de narrativas onde o maravilhoso se sobressai. A narrativa de Carvajal encaixa-se com perfeição naquilo que o teórico chama de “maravilhoso hiperbólico”, onde “os fenômenos não são sobrenaturais, a não ser por suas dimensões, superiores a que nos são familiares.”[4] Por outro lado, a decisão de inflar a realidade pode ser apenas um reflexo linguístico do espanto, inconsciente, ou uma decisão consciente, que podemos atribuir a uma categoria de criação literária, o devaneio – a fantasia produzida em estado de vigília: “O devaneio é uma atividade onírica na qual subsiste uma clareza de consciência. O sonhador de devaneio está presente no seu devaneio.”[5]

 Não se trata de matéria de ficção, pois, mas sim de uma manipulação consciente da realidade; em nosso caso, histórica.

O maravilhoso hiperbólico aliado ao devaneio ocorre no texto inúmeras vezes, de sorte que vamos nos ater a um ponto que tem sido motivo de polêmica desde sempre: o superpovoamento de algumas áreas do rio Amazonas, apontado por Carvajal, mas jamais comprovado, embora alguns autores considerem que a presença do europeu na região foi o estopim de um autêntico genocídio. Comparada com a baixíssima densidade populacional que conhecemos hoje, as margens do Amazonas vistas por Carvajal parecem resultantes de um devaneio do autor. O surgimento dessa área de grande população associa-se às maiores dificuldades bélicas encontradas pela expedição, numa equação simples, mas perfeita, como justificativa: mais gente, maior a resistência.

As hipérboles são recorrentes, tanto na referência a fatos cotidianos como nas descrições de batalhas, de saques e de características geográficas e demográficas da região, e até à fome que assombrava regularmente a expedição. E não deixa de ser hiperbólica a facilidade que tem Orellana de conversar com os nativos, numa relação intertextual com o evangelista Marcos (16, 14-18).[6]

 

O mito renovado. O mito das Amazonas remonta a Heródoto, no século VI a.C. Nas margens do Thermodon, perto do mar Negro, viviam tribos de mulheres guerreiras, as Amazonas, que tinham invadido uma grande parte do Oriente Próximo, apoderando-se de Éfeso, Esmirna, Pafos e outras cidades. Virgílio, na Eneida, coloca Pentesileia, a rainha das Amazonas, lutando ao lado dos troianos. Um dos doze trabalhos de Hércules foi tomar o cinto de Hipólita, rainha das Amazonas. Alexandre Magno visita-as no Thermodon. Marco Polo, no século XIII de nossa era, dá testemunho do reino de Resmacoron, fronteira com a Índia, onde havia uma ilha habitada exclusivamente por mulheres e outra por homens. Colombo anota em seus Diários notícias sobre a existência de ilhas similares na América – que, então, ele pensava ser a Ásia. Na segunda viagem à América, a frota de Colombo chega a ser atacada por uma “nuvem de flechas” lançadas por “um grupo de mulheres”, nas Antilhas. Antonio Pigafetta, cronista da expedição de Magalhães, também escreve sobre uma ilha só de mulheres. Gonzalo de Oviedo, na sua Historia General y Natural de las Indias, que em seu terceiro tomo abrigou a narrativa de Carvajal que ora se traduz, menciona a existência, nas terras do Novo Mundo, de regiões onde as mulheres “são senhores absolutos (...) e praticam armas (...) como essa rainha chamada Orocomay”, senhora de vasta extensão na vizinha Venezuela.[7] A verdade é que nenhuma narrativa sobre as Amazonas é tão extraordinária quanto a de Carvajal – pois ele, somente ele, as viu.  

Mas as Amazonas, o Eldorado e o País da Canela são apenas alguns dos mitos transladados para o continente americano: o Paraíso Terrestre era um dos objetivos de Colombo, que acreditou estar muito próximo a ele; os índios da América foram tomados pelas tribos perdidas de Israel; a Fonte da Juventude foi em vão procurada; ilhas fabulosas e seres fantásticos também povoaram a imaginação de viajantes e cronistas. Para aqueles aventureiros, todas as fantasias poderiam se tornar realidade sob o encantamento do Novo Mundo. Adaptando-se a classificação de Vico relativa às três idades pelas quais passou a humanidade, inferimos que os europeus já estavam na idade dos homens, mas não se desvencilhavam da memória maravilhosa das aventuras vividas na idade dos heróis – para tanto, precisavam encontrar um lugar onde ainda se vivia na idade dos deuses.[8]

 

A narrativa de Carvajal é a semente da qual brotou o mito, envolto em polêmica e mistérios. Há gente séria que acredita poder achar, ainda hoje, as provas de que Carvajal não aumentou em muito a realidade que vivera. Ao longo do tempo, foram várias as tentativas de esclarecer o mito: Walter Raleigh, que no século XVI descreveu animais fantásticos na Amazônia e anunciou ter descoberto o Eldorado, situou com precisão as terras das Amazonas; um século depois de Orellana, Acuña fala das Amazonas com fé inabalável; La Condamine, no século XVIII, acreditando que uma mentira tantas vezes repetida torna-se verdade, admite que “todas essas informações tendem a confirmar que houve neste continente uma república de mulheres que viviam sozinhas, não havendo homens entre elas.”[9]

Devaneio ou verdade, mito ou mistificação, a relação de Carvajal é o texto fundador da literatura feita na Amazônia. Os seus possíveis excessos fazem parte da nossa história e da nossa memória. Se não é ficção, se não é história, como classificá-lo? – talvez seja um livro de amor: amor pela aventura; amor por seu Capitão; amor por seu Deus; amor pela sua Ordem, da qual ele foi líder influente.

Auxiliomar Silva Ugarte e Valer – tradutor e editora – nos entregam mais que uma obra marcante na trajetória de ambos. Nos consagram, nas frágeis folhas deste livro, um documento perene: a certidão de nascimento da Amazônia, forjada em fogo no bronze da memória – como o mito que ela fundamentou.


Prefácio a Relação do famosíssimo e muito poderoso rio chamado Marañon, de Frei Gaspar de Carvajal, com tradução, estudo introdutório e notas de Auxiliomar Silva Ugarte, Manaus: Valer, 2021.

 

 

 



[1] CARVAJAL, Gaspar de; ROJAS, Alonso de; ACUÑA, Cristobal de. Descobrimentos do Rio das Amazonas. Traduzidos e anotados por C. de Melo-Leitão. Col. Brasiliana, vol. 203. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941.

[2] “Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação”. Além dos anais do referido Congresso, o texto, expandido, poderá ser lido in: PINTO, Zemaria. A história como metáfora e outros ensaios amorosos. Manaus: Reggo/AAL, 2018. p. 121-148. 

[3] BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução: Sérgio Goes de Paula. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 154-157.

[4] TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução: Maria Clara Correa Castello. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 60.

[5] BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução: Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 144.

[6] (...) “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. (...) Os sinais que acompanharão os que crerem serão estes: (...) falarão línguas novas (...).” In: BÍBLIA SAGRADA. Coordenador Geral: L. Garmus. Edição Vozes/Círculo do Livro, 1982. p. 1.234.

[7] MAGASICH-AIROLA, Jorge; DE BEER, Jean-Marc. América Mágica: quando a Europa da Renascença pensou estar conquistando o Paraíso. Tradução: Regina Vasconcellos. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 155-170.

[8] VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova. Tradução: Antonio Lázaro de Almeida Prado. São Paulo: Abril, 1974. p. 24.

[9] Apud MAGASICH-AIROLA e DE BEER, obra citada, p. 185.