Amigos do Fingidor

quinta-feira, 21 de julho de 2022

A poesia é necessária?

 

Litania dos pobres

Cruz e Sousa (1861-1898)

 

Os miseráveis, os rotos

São as flores dos esgotos.

São espectros implacáveis

Os rotos, os miseráveis.

São prantos negros de furnas

Caladas, mudas, soturnas.

São os grandes visionários

Dos abismos tumultuários.

As sombras das sombras mortas,

Cegos, a tatear nas portas.

Procurando o céu, aflitos

E varando o céu de gritos.

Faróis à noite apagados

Por ventos desesperados.

Inúteis, cansados braços

Pedindo amor aos espaços.

Mãos inquietas, estendidas

Ao vão deserto das vidas.

Figuras que o Santo Ofício

Condena a feroz suplício.

Arcas soltas ao nevoento

Dilúvio do Esquecimento.

Perdidas na correnteza

Das culpas da Natureza.

Ó pobres! Soluços feitos

Dos pecados imperfeitos!

Arrancadas amarguras

Do fundo das sepulturas.

Imagens dos deletérios

Imponderáveis mistérios.

Bandeiras rotas, sem nome,

Das barricadas da fome.

Bandeiras estraçalhadas

Das sangrentas barricadas.

Fantasmas vãos, sibilinos

Da caverna dos Destinos!

Ó pobres! O vosso bando

É tremendo, é formidando!

Ele já marcha crescendo,

O vosso bando tremendo...

Ele marcha por colinas,

Por montes e por campinas.

Nos areais e nas serras

Em hostes como as de guerras.

Cerradas legiões estranhas

A subir, descer montanhas.

Como avalanches terríveis

Enchendo plagas incríveis.

Atravessa já os mares,

Com aspectos singulares.

Perde-se além nas distâncias

A caravana das ânsias.

Perde-se além na poeira,

Das Esferas na cegueira.

Vai enchendo o estranho mundo

Com o seu soluçar profundo.

Como torres formidandas

De torturas miserandas.

E de tal forma no imenso

Mundo ele se torna denso.

E de tal forma se arrasta

Por toda a região mais vasta.

E de tal forma um encanto

Secreto vos veste tanto.

E de tal forma já cresce

O bando, que em vós parece.

Ó pobres de ocultas chagas

Lá das longínquas plagas!

Parece que em vós há sonho

E o vosso bando é risonho.

Que através das rotas vestes

Trazeis delícias celestes.

Que as vossas bocas, de um vinho

Prelibam todo o carinho...

Que os vossos olhos sombrios

Trazem raros amavios.

Que as vossas almas trevosas

Vêm cheias de odor das rosas.

De torpores, de indolências

E graças e quintessências.

Que já livres de martírios

Vêm festonadas de lírios.

Vêm nimbadas de magia,

De morna melancolia.

Que essas flageladas almas

Reverdecem como palmas.

Balanceadas no letargo

Dos sopros que vêm do largo...

Radiantes de ilusionismos,

Segredos, orientalismos.

Que como em águas de lagos

Boiam nelas cisnes vagos...

Que essas cabeças errantes

Trazem louros verdejantes.

E a languidez fugitiva 

De alguma esperança viva.

Que trazeis magos aspeitos

E o vosso bando é de eleitos.

Que vestes a pompa ardente

Do velho sonho dolente.

Que por entre os estertores

Sois uns belos sonhadores.