Amigos do Fingidor

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

A Semana de 22 e suas reverberações no Amazonas

Zemaria Pinto

 

Conferência de abertura para evento dedicado ao centenário da Semana de Arte Moderna, realizado na manhã do dia 09/08/2022, no auditório Rio Solimões, do Palácio Rio Negro.







Agradeço à organização pelo convite e pela confiança em mim depositada. Afinal, o tema Modernismo tem sido, na minha trajetória, motivo de polêmicas, e esta fala irá repercuti-las.

“Conhecereis a verdade e ela vos libertará”. Que me perdoe o evangelista João, que não conhecia Hegel, mas isso é uma falácia. Só a dúvida liberta! Como crítico, aprendi que minha opinião é sempre uma construção de dúvidas, não de certezas. E se a verdade tem dois lados, devo duvidar de ambos para construir minha síntese. Isto é dialética. E mais: se a verdade é uma abstração, a única certeza é a dúvida. Viva a dúvida!

O verbo reverberar, usado no título da palestra, significa, no contexto, repercutir, ecoar – o som. O barulho produzido pela Semana de Arte Moderna, que aconteceu em São Paulo, em fevereiro de 1922, se fez ouvir por muito tempo, no Brasil e no Amazonas. É sobre isso que iremos falar.

 

A Independência e o Modernismo: ficções

2022 marca não apenas o centenário da Semana de Arte Moderna, mas também o bicentenário da Independência. Duas ficções. Explico.

O Brasil não ficou independente em 1822, pelo simples fato de que continuamos devendo vassalagem ao reino de Portugal, tendo inclusive de ceder D. Pedro (que aqui era primeiro e em Portugal, apenas o quarto), deixando o país à deriva. Independência mesmo foi a implantação da República, em 1889, derrubando o segundo Pedro e instalando a primeira ditadura militar republicana do país, quando as chamadas forças armadas, assim me parece, tomaram gosto pela coisa, nos cem anos seguintes.

Quanto à Semana de Arte Moderna, foi um fracasso enquanto festa, pautada por inúmeras vaias, até porque o Modernismo já não era novidade, pois existia havia uns bons cinco anos. Mas, os paulistas souberam usar a história para nos impor o seu modernismo, que precisava das paradoxais bênçãos do arcebispo, de um lado, e do Partido Comunista, de outro. Na década de 1930, o Partido Integralista (nazifascista) também entrava na bacanal – e me perdoem o palavreado, mas direita, esquerda ou isentões, os modernistas eram todos sacerdotes de Baco ou Dioniso, conforme veremos adiante.

 

O Modernismo

Precisamos definir o que é o Modernismo: um conceito-mala, onde são acomodados vários conceitos – incompatíveis entre si e até mesmo antagônicos, excludentes. O ponto de convergência desses conceitos-movimentos é a rejeição ao Academicismo, em favor de uma arte nova, experimental.

Impressionismo, Fauvismo, Primitivismo, Expressionismo, Cubismo, Futurismo, Dadaísmo, Construtivismo, Surrealismo... A velha arte acadêmica europeia chegara numa encruzilhada: o mais do mesmo ou o desconhecido.

Lembrando Nietzsche, na formulação da evolução da arte pela dualidade Dioniso X Apolo – alegria e embriaguez; equilíbrio e disciplina – os modernistas do Velho Mundo optaram pelo bom Dioniso, que também atendia pelo antropônimo latino Baco, e caíram na farra bárbara do que os nazistas classificariam mais tarde como “arte degenerada”.

Na literatura, esse processo se dá em paralelo ao que acontecia nas artes plásticas.

Aliás, por motivos óbvios, embora seja imprescindível fazer referências às artes plásticas – tema de um debate, à tarde, com a professora Luciane Páscoa e o professor-artista Otoni Mesquita –, vou-me ater nesta fala ao Modernismo na Literatura.

Saindo do Realismo-Naturalismo e do Parnasianismo a que fora confinada no último quartel do século 19 – a literatura no Brasil começa a mudar com o Simbolismo de Cruz e Sousa, avançando pela ficção de Lima Barreto, trazendo o protagonismo negro e pobre ao proscênio. Euclides da Cunha – que já denunciara o genocídio de Canudos, no magnífico Os Sertões –, em breve passagem pela Amazônia, escreve as mais contundentes páginas sobre a degradação a que era submetido o trabalhador dos seringais. E no bojo dessa mudança, a poesia expressionista de Augusto dos Anjos, a melhor tradução em língua portuguesa da revolução iniciada por Baudelaire, em meados do século anterior – e isso foi chamado de pré-Modernismo.

 

Viva a vaia! O esquisito como paradigma

“Toda unanimidade é burra!”, diria Nelson Rodrigues 20 ou 30 anos depois, mas os modernistas descobriram isso na carne: para eles, a vaia era termômetro de inovação.

Eu disse, há pouco, que o Modernismo já existia havia uns bons cinco anos antes de 1922. Ignorando as histórias oficiais e oficiosas, guardo comigo a certeza de que o movimento que se convencionou chamar de Modernismo no Brasil começa mesmo em 1917 – em plena Primeira Guerra Mundial e sob o choque da Revolução Bolchevique –, ainda que com vários acontecimentos isolados, e sem muita conexão uns com os outros. Os fatos.

O lançamento do livro Juca Mulato, de Menotti del Picchia, cujo nacionalismo exacerbado viria depois a se tornar em fascismo, dá ao país um herói caipira, fora dos padrões afrancesados da época. É do mesmo ano Há uma gota de sangue em cada poema, de um certo Mário Sobral, pseudônimo de um tímido Mário de Andrade, que mereceu uma crítica consagradora de Manuel Bandeira: “o livro é ruim. Mas de um ruim esquisito.” Naquele mesmo ano, Bandeira lança seu primeiro livro, A cinza das horas, predominantemente simbolista, mas de um simbolismo esquisito..., onde poemas como “Cartas de meu avô”, “Poemeto irônico”, “Poemeto erótico” e “O anel de vidro” parecem querer saltar em busca de outros livros futuros do autor. É de 1917, a gravação de Pelo telefone, o primeiro samba gravado (na verdade era um maxixe), numa época em que sambista era sinônimo de marginal. De autoria controversa, passou para a história como de Donga e Mauro de Almeida. 1917 registra ainda o início do movimento sufragista pelo voto feminino, o que só viria a se concretizar, acreditem, 15 anos mais tarde, e, paradoxalmente, sob a ditadura de Vargas.

 

Viva a vaia! O Modernismo começou pelo Expressionismo

Mas, o acontecimento mais importante daquele ano não foi na literatura e sim nas artes plásticas: a exposição de Anita Malfatti, que, após períodos de estudos na Alemanha e nos Estados Unidos, voltara ao Brasil para botar fogo no arraial, pintando sob a influência devastadora do Expressionismo. Monteiro Lobato, nacionalista doente, com tendências ligeiramente à esquerda, não gostou do que viu e publicou um texto violento e covarde intitulado “Paranoia ou mistificação?”. Foi a consagração de Anita, e a verdadeira fundação do Modernismo, unindo no mesmo bloco os Andrade Mário e Oswald, e um grupo significativo de artistas e escritores, representantes de várias tendências estéticas e ideológicas, que, cinco anos depois, dariam um cunho oficial ao Modernismo, com a Semana de Arte Moderna.

 

Viva a vaia! O filho modernista mata o pai parnasiano

É importante dizer que havia alguma coisa no ar, além dos aviões de carreira, como diria o Barão de Itararé. O poema-ícone do Modernismo, “Os sapos”, de Manuel Bandeira, que seria consagradoramente vaiado na Semana de Arte Moderna, foi publicado no livro Carnaval, de 1919, onde o Simbolismo já cedera lugar a algo ainda inominado, anunciado no poema de abertura do livro, não por acaso, “Bacanal”:

Quero beber! cantar asneiras

no esto brutal das bebedeiras...

Em 1918, Monteiro Lobato, o antimodernista radical e covarde, lança o moderníssimo Urupês. Em 1919, Lima Barreto publica Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Em 1920, realiza-se a exposição de Victor Brecheret onde se destaca uma “Cabeça de Cristo com trancinhas”, comprada por... Mário de Andrade. 

Em 1921, Mário de Andrade publica uma série de sete ensaios, intitulada “Mestres do passado”, onde, com irônica reverência, prestem atenção no paradoxo, desconstrói criticamente o mito do Parnasianismo. A vaia solitária de Mário de Andrade ecoa até hoje na alma dos parnasianos, que são lidos, por quem não entende de poesia, como equívocos estéticos, quando devem ser lidos associados ao seu tempo, à sua época. Não se iludam: os parnasianos deixaram poemas de altíssima extração. Vocês só terão o trabalho de descobri-los; afinal, cem anos de menosprezo não se apagam com as minhas duvidosas palavras.    

Finalmente, 1922: o ano da festa. E o que vem depois é história, como a desavença, na década de 30, entre antas (fascistas) e antropófagos (mezzo comunistas, mezzo carolas-católicos, tutto tropicalistas...) – muito atual.

 

O Modernismo construído a partir da Amazônia

Dois livros seminais do Modernismo nasceram a partir do imaginário amazônico: Macunaíma (1928), do paulista Mário de Andrade, e Cobra Norato (1931), do gaúcho Raul Bopp. Haveria muito o que falar sobre ambos, mas vamos nos limitar a um breve registro, procurando despertar em quem não os conhece a curiosidade de descobri-los.

Macunaíma, a personagem, foi colhida na obra de Koch Grümberg, De Roraima ao Orinoco (1917), mas esse não é o único intertexto da obra, não à toa classificada pelo autor como “rapsódia” – que, em música, é uma miscelânea de composições ligadas a determinada cultura, momento ou lugar. O Macunaíma de Mário de Andrade é uma alegoria caricatural do homem brasileiro, especialmente de suas vilanias. Se fosse grego, Mário escreveria sobre as safadezas de Zeus; italiano, Júpiter. Brasileiro, só lhe restava Macunaíma – ou Poronominare ou mesmo o perverso Jurupari.

De passagem por Belém, onde morou por cerca de um ano, Raul Bopp tomou contato com Poranduba Amazonense (1890), de João Barbosa Rodrigues, bem como com Lendas em Nheengatu e Português (1926), de Antônio Brandão de Amorim, livros até hoje indispensáveis para o conhecimento da mitologia amazônica. Mas, foi em uma lenda que não estava em nenhum desses livros, que Bopp se baseou, por via da literatura oral: a estória da Cobra Honorato ou Cobra Norato, como o povo a simplificava.

Como fizera Mário de Andrade, Bopp reinventa a lenda: uma voz lírica narradora (um “eu lírico”) estrangula Cobra Norato, enfia-se em sua pele e sai “a correr mundo”, em busca da filha da Rainha Luzia. Se a voz lírica do poema é o poeta, podemos inferir que se trata de uma representação da apropriação da cultura local pelo homem branco brasileiro – um lance típico da antropofagia modernista. 

  

O Amazonas absorve, processa e reverbera o Modernismo

O Amazonas não ficaria alheio ao que acontecia em São Paulo e repercutia em outros estados brasileiros, como Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Pará. O processo foi lento, começando exatamente em 1922, mas sem nenhum vínculo com a Semana de Arte Moderna, e se estendendo até 1935, com a publicação do verdadeiro marco do Modernismo no Amazonas, o livro Ritmos de inquieta alegria, da menina Violeta Branca, que passava para trás os machões encastelados nas torres de marfim de uma arte retrógrada e sintonizava a nossa literatura com o Modernismo. Mas, um passo de cada vez.

 

Psicanálise no inferno ou o Amazonas também é modernista

No dia 7 de setembro de 1922, comemorando o centenário da tal Independência, o Diário Oficial do Amazonas publicava um longo poema narrativo, com 978 versos decassílabos e esquema rímico irregular, dividido em nove capítulos, que mostram a jornada do cearense Militão, uma alegoria dos milhares de nordestinos que foram recrutados para suprir a mão de obra nativa, insuficiente para atender à demanda dos seringais. O autor, Octavio Sarmento, que morreria quatro anos depois, só teria um livro publicado 81 anos depois de sua morte: A Uiara & outros poemas (2007), organizado por este locutor que vos fala.

O porquê do esquecimento? A saga de um nordestino pobre, que vivencia a experiência da morte cara a cara e depois enlouquece de paixão e de desejo, não era, definitivamente, para os padrões da época, um tema nobre. Embora, por vezes, exagerando nas cores, A Uiara é um poema sóbrio, antecipador de toda a literatura que viria na sequência. Com toques da nascente psicanálise, Sarmento mescla à paisagem – ora infernal, ora edênica – aspectos diversos da mitologia amazônica, construindo uma alegoria do que fora, na virada do século, a economia baseada no produto da seringueira. Não resisto ao paralelo com Juca Mulato, o poema de Menotti Del Picchia que, em 1917, retoma a temática regionalista, esquecida desde os românticos, e antecipa o Modernismo, trazendo a vida do homem comum para a poesia.

 

Revolução frustrada

Um autor que merece destaque no nosso incipiente modernismo – mas, não pela sua poesia ou sua ficção – é Álvaro Maia. Seu ensaio Canção de fé e esperança, de 1923, mistura política e poesia com raro equilíbrio. Articulado em três níveis distintos – passado, 1823, emancipação, frustrada, do Pará; presente, 1923, em plena agitação tenentista; e futuro, 2023 –, o jovem político e poeta, inconformado com a depressão econômica que fazia definhar o Amazonas, instigava os seus pares, pois só a eles cabia a construção do futuro. Álvaro Maia prega a revolução e até mesmo o separatismo, ao pensar no Amazonas do futuro, exatamente o momento que vivemos agora. Será?

 

A Grécia nunca foi aqui

A Uiara é a fundação do Modernismo no Amazonas. Mas, isso fica entre a gente. A crença geral é de que esse marco inicial é o insípido Poemas amazônicos (1927), de Pereira da Silva, uma miscelânea romântico-parnasiano-simbolista, vazada, às vezes, em versos livres e brancos, o que dá a falsa impressão de modernismo. Não se lhe nega qualidade poética, mas falta-lhe uma conexão com a própria contemporaneidade: amazônicos, seus poemas estão ligados a um panteísmo helênico, que soa falso e ingênuo, quase desonesto. À época com 35 anos, poderia ser um aprendizado, mas, o poeta desistiu das musas e foi ser deputado federal, onde, aliás, se deu muito bem: para quem não sabe, Pereira da Silva é o pai da Zona Franca de Manaus – para o bem e para o mal.

 

Um modernista a ser estudado

Não podemos falar sobre Modernismo no Amazonas, sem nos referirmos a Clóvis Barbosa, um modernista a ser resgatado, editor das revistas Redempção, Equador e A selva. Todo mundo já ouviu falar, mas ninguém viu. Eu elejo, proclamo e desafio: o paraibano Clóvis Barbosa é um caso a ser investigado pelos pesquisadores da literatura amazonense. Aliás, logo mais, à tarde uma mesa formada pelos escritores Márcio Souza e Aldisio Filgueiras debaterá o trabalho de Barbosa. Entre os seus colaboradores, estavam Álvaro Maia, Pereira da Silva, Violeta Branca, Nunes Pereira, Dalcídio Jurandir e Abguar Bastos – e também Mário de Andrade, Jorge Amado, Tristão de Athayde e Raul Bopp, entre muitos outros.

 

A visita de Mário de Andrade ao Amazonas – e viva a vaia!

Em uma viagem de recreio que o workaholic Mário de Andrade transforma em viagem de trabalho, ele passa três vezes por Manaus, entre 5 de junho e 21 de julho de 1927: inicialmente, a caminho de Iquitos, no Peru; depois, indo a Guajará-Mirim, então no Mato Grosso; finalmente, o retorno, em direção a Belém, para daí seguir de volta a São Paulo.

Mário escreveu as memórias dessa viagem no livro O turista aprendiz (1977, póstumo). Mas, essa viagem, ao contrário do que reza a lenda, não tem nada a ver com Macunaíma: ele pesquisava o folclore amazônico, especialmente a música. Em paralelo às farras incontáveis contam-se diversos encontros com o paraense Raimundo Moraes, que aqui morava, e o já citado Clóvis Barbosa. Em Humaitá, ele conhece Sérgio Olindense, o prefeito, autor de Sinfonia Verde (1922), que causou boa impressão em Mário.

No retorno a São Paulo, último dia em Manaus, Mário recebe a visita, segundo um de seus biógrafos, de um “grupelho antimodernista, chefiado por João Leda, da Academia Amazonense de Letras, que puxou um início de vaia”.[1] Aquela vaia era a consagração amazônica de Mário de Andrade!

 

A flor-mulher

Violeta Branca, aos 20 anos, publica, em 1935, Ritmos de inquieta alegria, um livro libertário de uma jovem madura, lírico sem ser sentimental, sensual sem ser vulgar. Violeta é um “luminoso poema de mocidade e sol”, para defini-la com um verso de sua própria autoria. Trabalhando diversos aspectos do imaginário amazônico, o espaço disponível é pequeno para dar a dimensão da poesia dessa mulher, cuja voz só encontraria eco mais de 40 anos depois, quando Astrid Cabral começa a publicar sua poesia.  Tratem de lê-las.

 

Clube da Madrugada: vida inteligente no entorno do Teatro Amazonas

O movimento que convencionamos chamar de Clube da Madrugada jamais foi um movimento estético no sentido que o léxico dá a palavra, como “padrão ou corrente de pensamento buscando a evolução de uma ou mais áreas do conhecimento humano”. Antes, o Clube da Madrugada começou como um movimento no sentido de “conjunto de ações visando, explicitamente, mudanças políticas e sociais”.[2] A partir desta acepção, afirmamos que o Clube da Madrugada começou como um movimento político, que só muito depois enveredou pela trilha estética, mesmo assim, de forma desorganizada, sem se constituir em uma trilha uniforme, mas se multifacetando em vários caminhos. O que, aliás, foi enriquecedor, pois o Clube nasce de uma contradição: sem perspectivas de futuro, aos jovens amazonenses – na expressão cunhada pelo sábio Djalma Batista – só restava o “êxodo anual”, a senha para buscar outras formas de vida fora do entorno do Teatro Amazonas. O Clube da Madrugada amadurece durante cinco anos, até o ato formal, que de formal não teve nada, da sua fundação, pelos que não aderiram ao êxodo, em 22 de novembro de 1954. Até nisso, nesses cinco anos de amadurecimento, eles quiseram ser modernistas. Mas, não eram. Do ponto de vista estético, a literatura do Clube está ligada à geração de 1945, formalista e antimodernista – embora não assumam isso, porque era muito antipático ser antimodernista. Aliás, o é até hoje. Registrem-se as mais notáveis exceções: olhando para o Brasil, a obra de João Cabral de Melo Neto; no Amazonas, o livro Frauta de Barro, de Luiz Bacellar, que tem traços modernistas marcantes.

Do ponto de vista estético, o Clube da Madrugada não tinha um ideário definido. Na poesia, por exemplo, as vertentes se bifurcam – inicialmente, existencial (Bacellar, Tufic e Antísthenes Pinto) e mística (Farias de Carvalho); posteriormente; telúrica (Elson Farias, Bacellar e Alcides Werk) e engajada (Alcides Werk, Alexandre Otto e Farias de Carvalho).

Numa síntese meramente didática: o Clube era modernista na ideologia e Geração de 45 na estética.

Ressalte-se que o jovem poeta Thiago de Mello, a rigor, não era do Clube, embora fosse da geração fundadora do mesmo. Aderindo ao êxodo anual, fora para o Rio de Janeiro no início dos anos 1940, com o intuito de estudar medicina, e menos de uma década e meia depois já era considerado uma das maiores vozes da poesia brasileira. Em conversas informais, entretanto, Thiago afirmava-se membro do Clube, mesmo a distância.

 

Os ceifadores precisam aprender a separar o joio do trigo

As três gerações que construíram a história do Clube da Madrugada – com ênfase na literatura e nas artes plásticas – constituem um fenômeno a ser explicado, partindo do princípio científico de que milagres são apenas improbabilidades estatísticas. Mas, outras gerações vieram à luz, como não poderia deixar de ser, inferiores numericamente, mas de qualidade estética a ombrear com a linha de frente do Clube.

Temo, entretanto, pelo que tenho observado, que o filtro da qualidade não esteja adequado. A novíssima geração de analistas e críticos, da qual vocês, jovens, fazem parte, tem por obrigação regular esse filtro e estudar a literatura que merece assim ser chamada. Cabe a metáfora do evangelista Mateus: “no tempo da colheita, é preciso separar o joio do trigo”.

 

1972, um ano para esquecer, mas que não me sai da lembrança

Eu fiz 15 anos em 1972. Meu primeiro ano no Científico, hoje Ensino Médio, no Colégio Estadual. A ditadura militar completava 8 anos, de um total de 21. Mas, ainda não sabíamos quando ela iria acabar. A oposição estava destroçada. Um último foco de resistência, que vinha sendo preparado há tempos, começava naquele ano na região do rio Araguaia. Seria feito em pedaços também. Eu não tenho saudades dos meus 15 anos. Eu não tenho saudades de 1972.

Mas, 1972 marcou também o sesquicentenário da Independência e o cinquentenário da Semana de Arte Moderna. Lembro de uma discussão bizantina sobre se era melhor usar tricinquentenário ou sesquicentenário. Ganhou a segunda. A ditadura explorou a data, fez festa o ano inteiro e continuou, na calada da noite, matando quem se opunha a ela. Acho que foi a partir daí que comecei a achar que a Independência fora uma farsa.

Quanto ao cinquentenário da Semana de Arte Moderna, foi motivo de festa também e de muito debate. A Semana continuava rendendo frutos nas artes plásticas, no teatro, na música e até no cinema. A década de 1960, mesmo sob censura criminosa, fora riquíssima em reverberações da Semana, com o Teatro Oficina, ainda em atividade hoje sob a liderança de Zé Celso, e o Tropicalismo, de Gil, Caetano, Gal e Tom Zé – todos oitentões ou quase, e em atividade. Muitos artistas foram presos, torturados, exilados. E produziam-se polêmicas, muitas polêmicas. Uma delas, hoje risível, discutia a importância da obra de Oswald de Andrade, um “comunista pequeno-burguês”. A verdade é que, qualquer que seja o juízo estético, a obra do controvertido Oswald tem um valor histórico inestimável.

1972, em que pese a sombra da ditadura, é um ano que não me sai da lembrança. Estamos agora mesmo falando da Semana, que completou 100 anos. E precisamos fazer festas, muitas festas, para o bicentenário da Independência não se transformar em uma armadilha para sequestrar a democracia. Sim, uma ditadura é o sequestro da democracia, porque destruída a democracia não será, jamais. A ditadura instaurada em 1964 matou centenas de democratas, mas não matou a democracia. Hoje, mais forte que nunca, não será um celerado qualquer que irá novamente sequestrá-la, cumprindo-se o vaticínio de Chico Buarque, em canção de 1977, ao referir-se ao monstro apocalíptico da antidemocracia: “um dia ele vai embora, maninha, pra nunca mais voltar.”[3]

Muito Obrigado!       

 



[1] TÉRCIO, Jason. Em busca da alma brasileira: biografia de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019. p. 268.

[2] Definições adaptadas do Dicionário Houaiss eletrônico da língua portuguesa, versão 1.0, junho de 2009, Editora Objetiva.

[3] “Maninha”, gravada pela primeira vez por Miúcha, Tom Jobim e Chico Buarque, no LP Miúcha & Antonio Carlos Jobim, de 1977.