O medo
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
A Antonio
Candido
“Porque há para todos nós um problema
sério... Este problema é o do medo.”
Antonio Candido, Plataforma
de Uma Geração
Em verdade
temos medo.
Nascemos
escuro.
As
existências são poucas:
Carteiro,
ditador, soldado.
Nosso
destino, incompleto.
E fomos
educados para o medo.
Cheiramos
flores de medo.
Vestimos
panos de medo.
De medo,
vermelhos rios
vadeamos.
Somos
apenas uns homens
e a
natureza traiu-nos.
Há as
árvores, as fábricas,
Doenças
galopantes, fomes.
Refugiamo-nos
no amor,
este
célebre sentimento,
e o amor
faltou: chovia,
ventava,
fazia frio em São Paulo.
Fazia frio
em São Paulo...
Nevava.
O medo, com
sua capa,
nos
dissimula e nos berça.
Fiquei com
medo de ti,
meu
companheiro moreno,
De nós, de
vós: e de tudo.
Estou com
medo da honra.
Assim nos
criam burgueses,
Nosso
caminho: traçado.
Por que
morrer em conjunto?
E se todos
nós vivêssemos?
Vem,
harmonia do medo,
vem, ó
terror das estradas,
susto na
noite, receio
de águas
poluídas. Muletas
do homem
só. Ajudai-nos,
lentos
poderes do láudano.
Até a
canção medrosa
se parte,
se transe e cala-se.
Faremos
casas de medo,
duros
tijolos de medo,
medrosos
caules, repuxos,
ruas só de
medo e calma.
E com asas
de prudência,
com
resplendores covardes,
atingiremos
o cimo
de nossa
cauta subida.
O medo, com
sua física,
tanto produz:
carcereiros,
edifícios,
escritores,
este poema;
outras vidas.
Tenhamos o
maior pavor,
Os mais
velhos compreendem.
O medo
cristalizou-os.
Estátuas
sábias, adeus.
Adeus:
vamos para a frente,
recuando de
olhos acesos.
Nossos
filhos tão felizes...
Fiéis
herdeiros do medo,
eles povoam
a cidade.
Depois da
cidade, o mundo.
Depois do
mundo, as estrelas,
dançando o
baile do medo.