Amigos do Fingidor

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

A poesia é necessária?

 

O medo

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

 

A Antonio Candido

        “Porque há para todos nós um problema sério... Este problema é o do medo.”

               Antonio Candido, Plataforma de Uma Geração

 

Em verdade temos medo.

Nascemos escuro.

As existências são poucas:

Carteiro, ditador, soldado.

Nosso destino, incompleto.

 

E fomos educados para o medo.

Cheiramos flores de medo.

Vestimos panos de medo.

De medo, vermelhos rios

vadeamos.

 

Somos apenas uns homens

e a natureza traiu-nos.

Há as árvores, as fábricas,

Doenças galopantes, fomes.

 

Refugiamo-nos no amor,

este célebre sentimento,

e o amor faltou: chovia,

ventava, fazia frio em São Paulo.

 

Fazia frio em São Paulo...

Nevava.

O medo, com sua capa,

nos dissimula e nos berça.

 

Fiquei com medo de ti,

meu companheiro moreno,

De nós, de vós: e de tudo.

Estou com medo da honra.

 

Assim nos criam burgueses,

Nosso caminho: traçado.

Por que morrer em conjunto?

E se todos nós vivêssemos?

 

Vem, harmonia do medo,

vem, ó terror das estradas,

susto na noite, receio

de águas poluídas. Muletas

 

do homem só. Ajudai-nos,

lentos poderes do láudano.

Até a canção medrosa

se parte, se transe e cala-se.

 

Faremos casas de medo,

duros tijolos de medo,

medrosos caules, repuxos,

ruas só de medo e calma.

 

E com asas de prudência,

com resplendores covardes,

atingiremos o cimo

de nossa cauta subida.

 

O medo, com sua física,

tanto produz: carcereiros,

edifícios, escritores,

este poema; outras vidas.

 

Tenhamos o maior pavor,

Os mais velhos compreendem.

O medo cristalizou-os.

Estátuas sábias, adeus.

 

Adeus: vamos para a frente,

recuando de olhos acesos.

Nossos filhos tão felizes...

Fiéis herdeiros do medo,

 

eles povoam a cidade.

Depois da cidade, o mundo.

Depois do mundo, as estrelas,

dançando o baile do medo.