Amigos do Fingidor

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

A poesia é necessária?

 

O navio negreiro (tragédia no mar) 1/3

Castro Alves (1847-1871)

I

 

‘Stamos em pleno mar... Doudo no espaço  

Brinca o luar – dourada borboleta –

E as vagas após ele correm... cansam

Como turba de infantes inquieta.

 

‘Stamos em pleno mar... Do firmamento

Os astros saltam como espumas de ouro...

O mar em troca acende as ardentias,

– Constelações do líquido tesouro...

 

‘Stamos em pleno mar... Dois infinitos

Ali se estreitam num abraço insano,

Azuis, dourados, plácidos, sublimes...

Qual dos dois é o céu? qual o oceano?...

 

‘Stamos em pleno mar... Abrindo as velas

Ao quente arfar das virações marinhas,

Veleiro brigue corre à flor dos mares,

Como roçam na vaga as andorinhas...

 

Donde vem?... Onde vai?... Das naus errantes

Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?

Neste Saara os corcéis o pó levantam,

Galopam, voam, mas não deixam traço.

 

Bem feliz quem ali pode nest’hora  

Sentir deste painel a majestade!

Embaixo – o mar... em cima – o firmamento...

E no mar e no céu – a imensidade!

 

Oh! que doce harmonia traz­-me a brisa!

Que música suave ao longe soa!

Meu Deus! como é sublime um canto ardente

Pelas vagas sem fim boiando à toa!

 

Homens do mar! Ó rudes marinheiros,

Tostados pelo sol dos quatro mundos!

Crianças que a procela acalentara

No berço destes pélagos profundos!

 

Esperai! Esperai! deixai que eu beba

Esta selvagem, livre poesia...

Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,

E o vento, que nas cordas assobia...

 

................................................................

 

Por que foges assim, barco ligeiro?

Por que foges do pávido poeta?

Oh! quem me dera acompanhar-­te a esteira

Que semelha no mar — doudo cometa!

 

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,

Tu que dormes das nuvens entre as gazas,

Sacode as penas, Leviatã do espaço!

Albatroz! Albatroz! dá-­me estas asas...

 

II

 

Que importa do nauta o berço,

Donde é filho, qual seu lar?

Ama a cadência do verso

Que lhe ensina o velho mar!

Cantai! que a noite é divina!

Resvala o brigue à bolina

Como golfinho veloz.

Presa ao mastro da mezena

Saudosa bandeira acena

As vagas que deixa após.

 

Do Espanhol as cantilenas

Requebradas de langor,

Lembram as moças morenas,

As andaluzas em flor.

Da Itália o filho indolente

Canta Veneza dormente,

– Terra de amor e traição –

Ou do golfo no regaço

Relembra os versos de Tasso

Junto às lavas do vulcão!

 

O Inglês – marinheiro frio,

Que ao nascer no mar se achou –

(Porque a Inglaterra é um navio,

Que Deus na Mancha ancorou),

Rijo entoa pátrias glórias,

Lembrando, orgulhoso, histórias

De Nelson e de Aboukir...

O Francês — predestinado —

Canta os louros do passado

E os loureiros do porvir!

 

Os marinheiros Helenos,

Que a vaga iônia criou,

Belos piratas morenos

Do mar que Ulisses cortou,

Homens que Fídias talhara,

Vão cantando em noite clara

Versos que Homero gemeu...

...Nautas de todas as plagas!

Vós sabeis achar nas vagas

As melodias do céu...



O navio negreiro divide-se em seis partes. As quatro partes restantes serão publicadas nas próximas quintas-feiras: 27/10 e 03/11.