Amigos do Fingidor

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

A poesia é necessária?


O navio negreiro (tragédia no mar) 2/3

Castro Alves (1847-1871)


III

 

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Desce mais, inda mais... não pode o olhar humano

Como o teu mergulhar no brigue voador.

Mas que vejo eu ali... que quadro de amarguras!

Que cena funeral!... Que tétricas figuras!...

Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

 

IV

 

Era um sonho dantesco... O tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho.

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar...

 

Negras mulheres, suspendendo às tetas

Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mães:

Outras, moças... mas nuas, espantadas,

No turbilhão de espectros arrastadas,

Em ânsia e mágoa vãs!

 

E ri-se a orquestra, irônica, estridente...

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais...

Se o velho arqueja... se no chão resvala,

Ouvem-se gritos... o chicote estala.

E voam mais e mais...

 

Presa nos elos de uma só cadeia,

A multidão faminta cambaleia,

E chora e dança ali!

 

....................................................................

 

Um de raiva delira, outro enlouquece...

Outro, que de martírios embrutece,

Cantando, geme e ri!

 

No entanto o capitão manda a manobra,

E após, fitando o céu que se desdobra,

Tão puro sobre o mar,

Diz do fumo entre os densos nevoeiros:

“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!

Fazei-os mais dançar!...”

 

E ri-se a orquestra irônica, estridente...

E da roda fantástica a serpente

Faz doudas espirais...

Qual num sonho dantesco as sombras voam!...

Gritos, ais, maldições, preces ressoam!

E ri-se Satanás!...