Amigos do Fingidor

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

A poesia é necessária?

 

Hoje, a tarde está muito azul


                 L. Ruas (1931-2000)

 

 

Hoje, a tarde está muito azul.

 

Não há ódio no olhar dos homens

E os olhos das mulheres são bondade.

Levemente o sol derrama uma camada

De ouro muito velho sobre as águas.

 

Os motoristas dirigem com cuidado

E os pedestres caminham descuidados.

Não houve nenhum desastre borrando

De vermelho o azul da tarde.

 

Não houve nenhuma tragédia:

Nenhum marido abandonou a mulher;

Nenhum operário caiu do andaime;

Não houve nenhum incêndio na cidade;

Nenhum anjo se revoltou contra Deus.

Os sexos estão repousados:

Virgem alguma foi, hoje, deflorada;

Não houve incestos nem adultérios;

Não houve casos de inversão sexual;

Não houve nenhum crime passional

Registrado na crônica policial.

 

Hoje, a tarde está muito azul...

 

Não houve prisões nem fuzilamentos políticos

Em qualquer parte do mundo.

Não houve jovens partindo para a guerra

Em qualquer parte do mundo.

 

Não houve sequestros nem lutas raciais

Em qualquer parte do mundo.

Não foram feitas experiências com bombas nucleares

Em qualquer parte do mundo.

 

As crianças soltam balões na praça

Sem medo de morrer bombardeadas

E os namorados esperam a noite, em paz.

 

E, enquanto as crianças brincam na praça,

Em paz,

Passa o enterro alegre de um menino

Levado, por meninos, num caixão azul.

 

Hoje, a tarde está muito azul...