Amigos do Fingidor

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Mar morto, de Jorge Amado, uma análise 8/14

Zemaria Pinto


Heroísmo – Aos 20 anos, Guma é um mestre de saveiro respeitado e querido por todos. Por essa época, retorna ao cais da Bahia a figura de Rosa Palmeirão. Mulher valente, suas aventuras são contadas num ABC vendido nas feiras de cordéis e os cantadores improvisam sobre seus feitos.

Rosa bateu seis soldados
Na noite de São João.
Chamaram seu Delegado,
Ele disse – não vou não.

Veio toda a puliça
Ela puxou o punhal
Foi medonho rebuliço
Foi uma noite fatal.

Veio orde de trazer
Palmeirão ou morta ou viva...
Ela puxou a navaia
Só se viu home correr...
(“Acalanto de Rosa Palmeirão”)

Rosa, bem mais velha que Guma, com um rastro de brigas e mortes na história, apaixona-se pelo jovem mestre de saveiro e quer ter um filho dele.

Em nova noite de tempestade, Godofredo, um funcionário graduado da companhia de navios baianos, que não tinha a simpatia dos mestres de saveiro, entra desesperado no “Farol das Estrelas”, o bar onde os mestres se reuniam após a faina diária. Um navio de grande calado estava ao largo, em meio ao temporal, sem poder entrar no porto, pois não havia ninguém que conhecesse o caminho que desviava dos arrecifes. A companhia não queria mandar um rebocador, pois era “muito caro”. Era preciso “um homem de coragem”.

Aí o velho Francisco lembrou-se da história de João Pequeno, mestre de saveiro que, em noite de tempestade, saiu a procurar ao largo um navio perdido e fora levado por Dona Janaína. Francisco diz que ainda hoje, em noites de tempestade, vê-se João Pequeno em busca do grande navio perdido na bruma. “E não descansará enquanto não o levar ao porto”.

Godofredo confessa que o seu desespero é pela presença de seus dois filhos a bordo. Guma apresenta-se para a empreitada. Seus companheiros, Rosa e Francisco entre eles, duvidam que ele volte.

As estrelas tinham desaparecido. Também a lua não veio nessa noite e por isso não havia cânticos no mar, não se falava de amor. As ondas corriam umas sobre as outras. Isso dentro da baía, antes mesmo do quebra-mar. Como não estaria então lá fora, adiante da barra, onde o mar fosse livre?
(“Lei”)

Não é pelo prêmio em dinheiro oferecido por Godofredo que Guma vai arriscar-se. Não. É porque ele ouve um apito, um pedido de socorro “e a lei do cais manda que se atenda aos que no mar pedem socorro”. Guma pensa que se conseguir voltar com vida será por vontade de Iemanjá, que não terá considerado ainda a hora de levá-lo, por isso o protegerá, e lhe dará a mulher desejada, “nova e virgem”. Naquele momento ele não pensa em Rosa Palmeirão, nem em sua mãe ou em qualquer outra mulher. Sem dizer palavra, faz um trato com Iemanjá: se ela quiser, ele não apenas voltará com vida como terá o seu “prêmio”.

Apesar de algumas avarias no “Valente”, Guma consegue retornar a salvo com o “Canavieiras”. Ali começava a lenda de mestre Guma.

Contam no cais que nunca mais João Pequeno apareceu porque o navio já tinha encontrado o caminho do porto. E foi desde esse dia que se começou a falar em Guma na beira do cais da Bahia.
(“Lei”)

É num dia da festa de Iemanjá que Guma vê Lívia pela primeira vez. Ela está olhando para ele e ele a percebe. Ao fim da festa, onde fora sagrado ogã, uma espécie de sacerdote do candomblé, como reconhecimento pelo seu heroísmo, Guma procura pela morena de “cabelos escorridos, parecendo molhados, os olhos claros de água, os lábios vermelhos”, mas não a encontra mais.

Rosa Palmeirão queria ter um filho de Guma, que pudesse substituir aquele nascido morto quando ela tinha apenas 15 anos. Rosa vê em Guma seu filho. Guma vê em Rosa sua mãe. Mas Rosa já não “pega” mais filho, por isso ela vai embora, mas promete voltar para cuidar do filho de Guma, assim que ele casasse e tivesse um. Viria ser avó já que não podia mais ser mãe.

Um amigo de infância, Rodolfo, malandro conhecido na cidade da Bahia, procura Guma para falar-lhe de uma meia-irmã que queria conhecê-lo e agradecer-lhe por ter conduzido o “Canavieiras” ao porto naquela noite de tempestade. Os tios dela eram passageiros. Guma reconhece em Lívia a morena do candomblé, “presente” de Dona Janaína. A contragosto dos tios, eles começam a namorar.

Um episódio marca o caráter heróico e amigo de Guma. É a história de Traíra. No porto de Maragogipe, onde se encontra de passagem, Guma ficou sabendo da surra covarde que uns soldados do Tiro de Guerra deram no canoeiro Traíra. Tiro de Guerra era como se chamavam as unidades do Exército no interior. Naquela noite, os marinheiros estavam se organizando para dar o troco. A confusão acontece numa casa de mulheres. Traíra, com uma facada certeira, mata um dos soldados, mas recebe um tiro. A jovem prostituta que estava com Guma também é morta. Ao chegar em seu saveiro, Guma encontra Josué, que levara Traíra, moribundo. Com um estratagema, Guma consegue ludibriar a polícia e levar Traíra para a cidade da Bahia, na esperança de que Dr. Rodrigo possa salvá-lo. Em vão. Traíra morre deixando mulher e três filhas.

Esse episódio mexe com a cabeça de Guma, que sabe que a vida dos homens do mar é sempre abreviada pelo destino implacável.

Um marítimo deve ser livre, diz o velho Francisco, diz a canção, dizem os fatos diários. Livre não para amar, para viver mais largamente. Porém livre para morrer, para celebrar suas núpcias com Iemanjá, a dona do mar. Livre para morrer, que é para a morte que eles vivem, morte tão próxima, tão certa que nem é esperada, nem se preocupam com ela. Um marítimo não tem o direito de sacrificar uma mulher. Não por causa da pobreza da vida deles, da miséria das casas, do peixe diário, da falta eterna de dinheiro. Isso qualquer uma delas suportaria, que em geral estão acostumadas, ou são do cais mesmo ou são filhas de operários, de trabalhadores miseráveis também. À pobreza elas estão acostumadas, muitas vezes a coisas piores que a pobreza. Mas a que não estão acostumadas é a esta morte repentina, a ficar de repente sem seu homem, sem teto, sem abrigo, sem comida, a serem logo engolidas ou por uma fábrica ou pela prostituição quando são mais novas.
(“Viscondes, Condes, Marqueses e Besouro”)

Mas a paixão pela morena Lívia fala mais alto, e como os tios não faziam gosto naquele relacionamento, eles fogem para Cachoeira, consumando a união. Acalmados os ânimos dos velhos, voltam para a Bahia e casam-se “de verdade”.

Ilustrações: capa da edição brasileira de 1975; capa da edição cubana de 1977.