Amigos do Fingidor

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Mar morto, de Jorge Amado, uma análise 11/14

Zemaria Pinto


Morte – É nesse período de dificuldades que o árabe Toufick, braço direito de F. Murad, rico comerciante e notório contrabandista, propõe negócio a Guma. Conhecedor de sua fama de bom mestre de saveiro e sobretudo de que seria uma pessoa em quem pudesse confiar, Toufick propõe a Guma um negócio sem riscos (com a proteção da própria Polícia!) e de retorno financeiro imediato. Tudo o que Guma precisa fazer é transportar algumas cargas de um navio ancorado ao largo para o porto de Santo Antônio, perto do farol da Barra, onde ficava o armazém de F. Murad. Guma pensa que pode fazer o serviço “uma ou duas vezes, o necessário para pagar o barco, depois dava o fora em Toufick”. Reacende-se nele a esperança de mudar de vida e atender aos anseios de Lívia, abandonar aquela vida de riscos cotidianos.

Feito o primeiro “serviço”, Guma quita sua dívida com João Caçula. Para Lívia, diz que fora um empréstimo de Rodolfo, que, aliás, tinha “negócios” com Toufick. Para os demais, diz que fora empréstimo do futuro sócio, tio de Lívia. O segundo carregamento não rendeu tanto, mas foi suficiente para quitar boa parte do débito com Dr. Rodrigo. A justificativa para o médico foi de que ganhara a quantia “na roleta”.

Vendo facilidade no contrabando, Guma considera que não precisa sair imediatamente do negócio: pode juntar um dinheirinho extra, ir para a cidade, associar-se com o tio de Lívia em um armazém de grande porte (não mais uma simples quitanda!) e nem precisaria vender o “Paquete Voador”...

Poderia vir de vez em quando, dar suas viagens também. Continuaria a ser um marítimo, a ter interesse no mar, a navegar. Satisfaria Lívia e ficaria satisfeito também, não se mudaria por completo. Aquilo é que era um bom plano. Mas para realizá-lo tinha que demorar mais tempo no negócio de contrabando para fazer o dinheiro necessário para entrar como sócio do tio de Lívia. Mais uns meses, umas tantas viagens, teria juntado o suficiente. Era um negócio rendoso aquele.
(“Contrabandista”)

Guma faz muitas outras viagens para o contrabando. Quita por completo o saveiro e começa a poupar para o futuro. Lívia acaba descobrindo de onde Guma arranjava dinheiro e vendo nisso a perspectiva de mudar definitivamente de vida, acaba concordando em que ele continue no negócio até quando fosse necessário. Estabelecem metas, fazem planos: o dia de abandonar o contrabando e montar seu próprio negócio na “cidade alta”, longe do mar e das tempestades, se aproxima.

Na rotina do contrabando, Guma vê as nuvens que se acumulam no céu e o vento que sopra furioso: prenúncio de tempestade. No saveiro, além de Guma e Toufick, vão Haddad, amigo deste, e Antônio, filho de F. Murad, estudante de Direito e boêmio, que queria conhecer de perto as atividades do pai. Mal se vê ao largo o navio que vai abastecê-los, encoberto pela bruma. Logo cai uma chuva violenta e o mar se encrespa. O trabalho de carregamento é concluído sob o forte temporal. O “Paquete Voador” ruma para o porto de Santo Antônio. Guma sabe do perigo. O saveiro carregado torna-se mais difícil de manobrar. O vento os desvia da praia, empurra-os para o mar alto.

Bem defronte é o porto de Santo Antônio. Mas estão muito ao largo. Guma manobra para embicar para o porto. Pouco adiante os arrecifes cobertos de água. Manobra com facilidade, mas as águas se levantam em ondas colossais, atiram o saveiro para os arrecifes. Estava carregado demais. Virou como se fosse um brinquedo na mão do mar. Os tubarões vieram de alguma parte, eles estão sempre próximos dos naufrágios.
(“Terras de Aiocá”)

Guma, vendo Toufick se debatendo, toma-o sobre as costas e nada, “contra as águas e contra o vento”, até o cais. Extenuado, é recebido por F. Murad, tomado de desespero, por não ver Antônio, seu filho. Guma atira-se na água, nadando com dificuldade.

Agora as forças lhe faltam a cada momento. Mas continua. E chega a tempo de ver Antônio ainda seguro no casco do saveiro que está virado, parecendo o corpo de uma baleia. Pega o rapaz pelos cabelos e recomeça a travessia. O mar o impede. Os tubarões, que já devoraram Haddad, vêm no seu rastro. Guma traz a faca na boca, Antônio seguro pelos cabelos. Na sua frente vê Lívia, Lívia quase tranquila, Lívia esperando que tudo mude para melhor. Lívia que tem um filho dele, Lívia a mulher mais bonita do cais. E os tubarões vêm atrás, se aproximam, ele esgota as forças. Mesmo Lívia ele não vê mais. Sabe apenas que tem que nadar porque leva um filho pelos cabelos, filho de F. Murad ou seu filho, ele não distingue mais. Lívia, Lívia vai na sua frente. As águas do mar são fortes, o vento assovia. Mas ele nada, ele corta as ondas. Leva um filho, será seu filho?
(“Terras de Aiocá”)

Guma nada com Antônio até bem próximo da praia, quando então o solta. As ondas jogam o rapaz a salvo na areia. Os tubarões alcançam Guma. Ele luta em vão.

Algum tempo depois a tempestade serenou. A lua apareceu e Iemanjá estendeu seus cabelos sobre o lugar onde Guma desaparecera. E o levou para as viagens misteriosas das terras misteriosas de Aiocá, para onde vão os valentes, os mais valentes do cais.
(“Terras de Aiocá”)

Milagre – O corpo de Guma jamais será encontrado, pois fora levado por Dona Janaína para a última viagem. Lívia sofre, sim, mas sem desespero. O “Paquete Voador”, ainda recuperável, é atirado na areia pela força do vento. Rosa Palmeirão retorna para ser “avó” do pequeno Frederico, conforme prometera. A mãe de Guma também retorna, está quase cega. Lívia considera que vender o saveiro “era como se entregasse seu corpo, como se deixasse possuir por outro (...) Vendê-lo era como vender seu corpo.”

Lívia assume o lugar de Guma na direção do saveiro, com o auxílio de Rosa Palmeirão. Vão guardar o lugar que um dia será de Frederico.

No cais o velho Francisco balança a cabeça. Uma vez, quando fez o que nenhum mestre de saveiro faria, ele viu Iemanjá, a dona do mar. E não é ela quem vai agora de pé no “Paquete Voador”? Não é ela? Ela é, sim. É Iemanjá quem vai ali. E o velho Francisco grita para os outros no cais:

 Vejam! Vejam! É Janaína.

Olharam e viram. Dona Dulce olhou também da janela da escola. Viu uma mulher forte que lutava. A luta era seu milagre. Começava a se realizar. No cais os marítimos viam Iemanjá, a dos cinco nomes. O velho Francisco gritava, era a segunda vez que ele a via.

(“Estrela”)

Ilustrações: capa da edição brasileira de 1982; capa da edição turca de 1982.