Amigos do Fingidor

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Mar morto, de Jorge Amado, uma análise 9/14

Zemaria Pinto


Traição e remorso – Cinco meses após o casamento, Lívia tem o primeiro contato com a morte no cais: mestre Raimundo e seu filho Jacques, este da idade de Guma, afundam com o saveiro em noite de tempestade. A vida no cais está difícil. Poucas viagens e a tabela de preços muito abaixo do real valor do serviço que prestam. Guma se vira como pode. Por essa época, Rufino, o melhor amigo de Guma, enrabicha-se pela mulata Esmeralda e os dois vêm morar bem ao lado de Guma e Lívia. Para esta, a vinda da mulata é uma dádiva, pois quando Guma não estava em casa sua única companhia era o velho Francisco, que só sabia contar histórias de tempestades e naufrágios.

Esmeralda é uma mulher vivida, que não se apega a homem. Bonita e sensual deixa-se levar pelos instintos e logo vê em Guma um objeto de conquista. Ao mesmo tempo em que se desdobra de atenções com Lívia, que está grávida, não perde oportunidade de insinuar-se para Guma. Numa ocasião em que Rufino está viajando, Lívia sente-se mal e Guma acorda a vizinha para ficar com a mulher enquanto vai buscar o Dr. Rodrigo e o velho Francisco sai para chamar os tios. Quando tudo se acalma, com Lívia dormindo no quarto, Guma não resiste à sedução de Esmeralda e os dois fazem sexo numa rede, na sala. Extenuados, ela o provoca: “– Se Rufino visse isso...”

Guma volta a si. É bem Esmeralda quem está ali. É a mulher de Rufino. E sua própria mulher dorme doente no outro quarto. Esmeralda novamente fala em Rufino. Guma não ouve mais nada. Seus olhos estão vermelhos de sangue, sua boca seca, suas mãos procuram o pescoço de Esmeralda. Começam a apertar. Ela diz...
– Deixe dessa brincadeira...
Não é brincadeira. Ele a matará e depois irá se encontrar com Janaína no fundo mar. Esmeralda já vai gritar quando Guma ouve as vozes dos tios de Lívia conversando com o velho Francisco. Pula da rede, Esmeralda se compõe apressadamente mas a tia de Lívia espia para a sala com uns olhos espantados. Guma sacode as mãos agora inúteis:
– Lívia já está melhor.
(“Esmeralda”)

Começa aqui a degradação de Guma. A lembrança da dupla traição o consome. Ele violara a lei do cais. Lívia, sem de nada desconfiar, apega-se mais a Esmeralda. Paradoxalmente, Guma sente ciúmes de Esmeralda. Mas é um ciúme motivado pela posse incompleta. Ela fora dele, ainda que por alguns instantes, e o seu orgulho de macho não esquece isso. Rufino, por sua vez, desconfia que Esmeralda o está traindo e confidencia isso a Guma, o que o perturba ainda mais.

Um temporal naufragara três barcos. Guma e Rufino saem no “Valente” em socorro. Na tentativa de resgatar os corpos, Rufino mergulha sem se dar conta de um tubarão que se aproximava. Com uma faca na boca, Guma cai na água em socorro do amigo, salvando-o.

Por essa época, um visitante inesperado vem perturbar ainda mais o pequeno universo onde gravitam nossos personagens: é Leôncio, irmão de Francisco, a quem ele jamais se referira. Leôncio desaparece sem deixar vestígios, mas sua visita perturba Francisco, que dá de beber além da conta. Rufino, por seu turno, anda “diferente”. A verdade é que Esmeralda deixara de assediar Guma, o que era indicativo de que arranjara um amante. Guma imaginava-a morta e pensava que com isso a paz seria restabelecida.

O pior porém é que ela não morria, estava viva e com certeza traía Rufino com outro. Mesmo sem querer Guma sentia ciúmes.
(“Água Mansa”)

Por fim, Rufino descobre que Esmeralda estivera saindo com um marinheiro de um navio que já se fora. Como não podia vingar-se no sujeito, contenta-se em vingar-se na mulher. Convida-a para uma festa em Santo Amaro e vão na sua canoa. Pelas tantas, conta-lhe que sabe de tudo e vai matá-la. Percebendo que era inevitável, ela arma sua vingança também: conta-lhe com detalhes o que se passou entre ela e o melhor amigo dele. Rufino mata Esmeralda e mergulha para a morte.

Não pensou em Guma um só momento. Era como se o amigo tivesse morrido há muito. Passou longamente a mão pelo casco da canoa, olhou pela última vez as luzes distantes do seu porto, as águas se abriram para seu corpo. E na hora em que subiu pela última vez (já não percebia a canoa sem canoeiro que ia desgovernada) desfilaram perante seus olhos aqueles a quem o negro amara: seu pai, um gigante, sorrindo; viu sua mãe curvada e trôpega; viu Lívia, sua afilhada de casamento e Lívia ia no cortejo nupcial; viu Dona Dulce; viu o velho Francisco, Dr. Rodrigo, mestre Manuel, saveiros e canoeiros. E viu também Guma, mas Guma ria dele, ria nas suas costas. Seus olhos quase sem vida viram Guma rindo dele. Morreu sem alegria.
(“Água Mansa”)

Ilustrações: capa da edição francesa de 1982; capa de edição especial da editora abril, anos 1970.