Inácio
Oliveira
I
Eu estava atrasado e cheguei quase
correndo, mas Lola sorriu pra mim e disse. “Eu fico feliz quando te vejo.” Foi
quando Lola disse isso que me apaixonei por ela novamente. Uma mulher que sabe
dizer a palavra certa na hora certa, que tem a forma precisa de olhar e ser
olhada, que sabe jogar o jogo; que, enfim, sabe iludir: uma mulher assim pode
conquistar qualquer homem; porque nós, os homens, vivemos disso, de ilusões. Foi
nesse dia então que eu me apaixonei por Lola outra vez, mas eu ainda não sabia
disso. Havia chovido muito, formavam-se poças d’água nas ruas e eu estava
ensopado da água da chuva. Lola me deu uma toalha sua para que eu me enxugasse;
na toalha estava o exato cheiro do seu corpo depois do banho. Se eu pudesse
teria roubado aquela toalha para mim.
Estávamos sós no apartamento. Minhas
mãos que conheciam tantos segredos paravam indecisas no ar. Lola percebeu,
divertida, meu nervosismo. Tomou minhas mãos entre as suas e pediu. “Conta uma
história.” “Uma história?” “Sim, uma história. Você não é escritor? Me conta uma
história”. “Um homem e uma mulher estão sozinhos num apartamento. A primeira
vez que se viram foi há muito, muito tempo. Ele nunca a esqueceu. Na sua casa
ele pintou num quadro o rosto disforme de uma mulher que se ela olhasse por um
tempo e de uma certa distância veria que essa mulher se parece com ela. Nas
cores fortes e pinceladas brutas ela perceberia ali um certo desejo sublimado.
Nas grandes noites de insônia esse homem fica na sala a observar o quadro, a
luz da rua ilumina o rosto da mulher que por um instante lhe parece sorrir, ele
não entende esse sorriso. Agora estão um diante do outro e ela sorri aquele
mesmo sorriso das suas noites insones. Neste momento ele sabe que não hesitaria
em sacrificar sua vida para ver essa mulher nua e tocar o seu corpo. Pensa na
suavidade da sua pele, no seu cheiro, nas formas do seu corpo por debaixo das
roupas. Sente vontade de passar a língua nos lóbulos da sua orelha. Ela conhece
esse desejo que já viu refletido em tantos homens. Sabe que pode fazer dele o
que bem entender, pode fazê-lo seu amante, seu servo, seu escravo. O mundo
parece ter parado; por uma janela entra a última luz da tarde. Há um alinhamento
improvável dos astros e das estrelas, milhões de eventos insignificantes tiveram
que acontecer para que esse momento fosse possível. Eles não têm muito tempo,
então se beijam com volúpia e desespero como se disso dependesse suas
sobrevivências.” Lola então ri e diz. “Que bonito, essa história aconteceu?”
“Não, mas vai acontecer.” Então eu começo a desabotoar a blusa de Lola que se
oferece às minhas mãos e a luz opaca da tarde entra pela janela.
Muitos dias depois se eu fechasse os
olhos ainda poderia ver o corpo de Lola se oferecendo ao meu, a auréola cor de
rosa de seus mamilos, o tom indeciso de branco e moreno da sua pele. Eu nunca
mais esqueceria uma certa maneira sua de estar entregue. Eu estava pintando uma
série de quadros, mas todos eles pareciam ter tido ela como modelo, escrevia
poemas e era como se tudo que eu escrevesse fosse uma mensagem para Lola,
palavras inúteis que ela nunca leria.
II
A primeira vez que eu vi Lola nós
éramos ainda crianças. Talvez eu fosse um pouco mais velho que ela. Ela e o pai
haviam se mudado para nossa rua naquele ano, nada sabíamos sobre aquela
estranha família de duas pessoas. Lola estava sentada nos degraus da escada. Parecia
contrariada com alguma coisa, seu cabelo vermelho incendiava-se na luz do sol,
sorriu quando me viu olhando para ela. Nunca ninguém saberá o quanto eu gostei
daquela menina ali sentada, tão pequenina, tão cheia de si. À noite eu sonhava
com Lola e pela manhã acordava pensando nela. A primeira paixão de homem é
sempre a mais absurda, a mais estúpida, a mais ridícula e a única verdadeira,
as outras que virão depois são meros resquícios dessa primeira paixão.
Um dia roubei um broche da caixa de
joias da minha mãe, um broche muito bonito que havia sido da minha avó. Sempre
que ia pra escola eu encontrava Lola no caminho, nunca tinha coragem de lhe
falar. Naquele dia parei minha bicicleta na sua frente e lhe estendi a mão com
o broche. Seus olhos brilharam quando viram o objeto. Eu não dizia nada, ela
também não. Tomou o broche nas mãos e ficou observando, encantada. Aproximou-se
de mim e me beijou no rosto, o beijo estalou úmido e quente no meu rosto
vermelho. Ainda hoje há certos dias em que eu posso sentir esse beijo, guardei
essa lembrança como um amuleto contra as tristezas desta vida.
O pai de Lola era um homem obscuro que
nos inspirava certo temor. A casa onde eles viviam permanecia sempre de janelas
fechadas, raramente os víamos na rua. Logo os vizinhos começaram a comentar
sobre aquele homem que não falava com ninguém. Alguns diziam que ele era um
assassino profissional, outros que era um traficante foragido, outros diziam
que ele havia matado a mãe de Lola e fugido com a menina, outros ainda diziam
que Lola não era sua filha e que ele a havia sequestrado. Eu só queria estar
perto de Lola, não me importava que o seu pai fosse um assassino cruel que
cortaria minha cabeça e arrancaria minhas vísceras. Só muitos anos depois
descobri que o pai de Lola na verdade era um homem bom que havia feito coisas
ruins, por isso coisas ruins aconteciam com ele. E porque ele era o pai de Lola
e a amava coisas ruins também aconteciam com ela.
Passei o ano todo criando coragem para
falar com Lola, naquele dia eu havia reunido todas as minhas forças e estava
decido a conversar com ela. O céu estava nublado e ameaçava chover a qualquer
momento, mas não choveu. Lola não apareceu na escola e sua casa estava fechada.
Havia dois carros rondando por perto, ficaram lá a manhã inteira, depois foram
embora, nem o pai nem Lola apareceram. Depois soubemos que eles haviam ido
embora no meio da noite, eles nunca mais voltariam para o bairro. Eu não sabia
nada sobre Lola, por isso inventei várias histórias suas para mim. Em uma delas
Lola e eu fugíamos para um lugar distante e exótico, cheio de aventuras, onde
havia camelos e tapetes mágicos, como no livro das mil e uma noites. Eu lia
esses livros e imaginava que éramos nós dois que vivíamos aquelas histórias. O
fim daquele ano foi triste. Eu era só uma criança e mal conhecia Lola, mas
depois que ela foi embora eu fiquei achando que o mundo era um lugar ruim e a
vida uma coisa sem sentido.