Amigos do Fingidor

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Aparições de Lola – 1/5



Inácio Oliveira

I

         Eu estava atrasado e cheguei quase correndo, mas Lola sorriu pra mim e disse. “Eu fico feliz quando te vejo.” Foi quando Lola disse isso que me apaixonei por ela novamente. Uma mulher que sabe dizer a palavra certa na hora certa, que tem a forma precisa de olhar e ser olhada, que sabe jogar o jogo; que, enfim, sabe iludir: uma mulher assim pode conquistar qualquer homem; porque nós, os homens, vivemos disso, de ilusões. Foi nesse dia então que eu me apaixonei por Lola outra vez, mas eu ainda não sabia disso. Havia chovido muito, formavam-se poças d’água nas ruas e eu estava ensopado da água da chuva. Lola me deu uma toalha sua para que eu me enxugasse; na toalha estava o exato cheiro do seu corpo depois do banho. Se eu pudesse teria roubado aquela toalha para mim.

         Estávamos sós no apartamento. Minhas mãos que conheciam tantos segredos paravam indecisas no ar. Lola percebeu, divertida, meu nervosismo. Tomou minhas mãos entre as suas e pediu. “Conta uma história.” “Uma história?” “Sim, uma história. Você não é escritor? Me conta uma história”. “Um homem e uma mulher estão sozinhos num apartamento. A primeira vez que se viram foi há muito, muito tempo. Ele nunca a esqueceu. Na sua casa ele pintou num quadro o rosto disforme de uma mulher que se ela olhasse por um tempo e de uma certa distância veria que essa mulher se parece com ela. Nas cores fortes e pinceladas brutas ela perceberia ali um certo desejo sublimado. Nas grandes noites de insônia esse homem fica na sala a observar o quadro, a luz da rua ilumina o rosto da mulher que por um instante lhe parece sorrir, ele não entende esse sorriso. Agora estão um diante do outro e ela sorri aquele mesmo sorriso das suas noites insones. Neste momento ele sabe que não hesitaria em sacrificar sua vida para ver essa mulher nua e tocar o seu corpo. Pensa na suavidade da sua pele, no seu cheiro, nas formas do seu corpo por debaixo das roupas. Sente vontade de passar a língua nos lóbulos da sua orelha. Ela conhece esse desejo que já viu refletido em tantos homens. Sabe que pode fazer dele o que bem entender, pode fazê-lo seu amante, seu servo, seu escravo. O mundo parece ter parado; por uma janela entra a última luz da tarde. Há um alinhamento improvável dos astros e das estrelas, milhões de eventos insignificantes tiveram que acontecer para que esse momento fosse possível. Eles não têm muito tempo, então se beijam com volúpia e desespero como se disso dependesse suas sobrevivências.” Lola então ri e diz. “Que bonito, essa história aconteceu?” “Não, mas vai acontecer.” Então eu começo a desabotoar a blusa de Lola que se oferece às minhas mãos e a luz opaca da tarde entra pela janela.

         Muitos dias depois se eu fechasse os olhos ainda poderia ver o corpo de Lola se oferecendo ao meu, a auréola cor de rosa de seus mamilos, o tom indeciso de branco e moreno da sua pele. Eu nunca mais esqueceria uma certa maneira sua de estar entregue. Eu estava pintando uma série de quadros, mas todos eles pareciam ter tido ela como modelo, escrevia poemas e era como se tudo que eu escrevesse fosse uma mensagem para Lola, palavras inúteis que ela nunca leria.

II

         A primeira vez que eu vi Lola nós éramos ainda crianças. Talvez eu fosse um pouco mais velho que ela. Ela e o pai haviam se mudado para nossa rua naquele ano, nada sabíamos sobre aquela estranha família de duas pessoas. Lola estava sentada nos degraus da escada. Parecia contrariada com alguma coisa, seu cabelo vermelho incendiava-se na luz do sol, sorriu quando me viu olhando para ela. Nunca ninguém saberá o quanto eu gostei daquela menina ali sentada, tão pequenina, tão cheia de si. À noite eu sonhava com Lola e pela manhã acordava pensando nela. A primeira paixão de homem é sempre a mais absurda, a mais estúpida, a mais ridícula e a única verdadeira, as outras que virão depois são meros resquícios dessa primeira paixão.

         Um dia roubei um broche da caixa de joias da minha mãe, um broche muito bonito que havia sido da minha avó. Sempre que ia pra escola eu encontrava Lola no caminho, nunca tinha coragem de lhe falar. Naquele dia parei minha bicicleta na sua frente e lhe estendi a mão com o broche. Seus olhos brilharam quando viram o objeto. Eu não dizia nada, ela também não. Tomou o broche nas mãos e ficou observando, encantada. Aproximou-se de mim e me beijou no rosto, o beijo estalou úmido e quente no meu rosto vermelho. Ainda hoje há certos dias em que eu posso sentir esse beijo, guardei essa lembrança como um amuleto contra as tristezas desta vida.

         O pai de Lola era um homem obscuro que nos inspirava certo temor. A casa onde eles viviam permanecia sempre de janelas fechadas, raramente os víamos na rua. Logo os vizinhos começaram a comentar sobre aquele homem que não falava com ninguém. Alguns diziam que ele era um assassino profissional, outros que era um traficante foragido, outros diziam que ele havia matado a mãe de Lola e fugido com a menina, outros ainda diziam que Lola não era sua filha e que ele a havia sequestrado. Eu só queria estar perto de Lola, não me importava que o seu pai fosse um assassino cruel que cortaria minha cabeça e arrancaria minhas vísceras. Só muitos anos depois descobri que o pai de Lola na verdade era um homem bom que havia feito coisas ruins, por isso coisas ruins aconteciam com ele. E porque ele era o pai de Lola e a amava coisas ruins também aconteciam com ela.

         Passei o ano todo criando coragem para falar com Lola, naquele dia eu havia reunido todas as minhas forças e estava decido a conversar com ela. O céu estava nublado e ameaçava chover a qualquer momento, mas não choveu. Lola não apareceu na escola e sua casa estava fechada. Havia dois carros rondando por perto, ficaram lá a manhã inteira, depois foram embora, nem o pai nem Lola apareceram. Depois soubemos que eles haviam ido embora no meio da noite, eles nunca mais voltariam para o bairro. Eu não sabia nada sobre Lola, por isso inventei várias histórias suas para mim. Em uma delas Lola e eu fugíamos para um lugar distante e exótico, cheio de aventuras, onde havia camelos e tapetes mágicos, como no livro das mil e uma noites. Eu lia esses livros e imaginava que éramos nós dois que vivíamos aquelas histórias. O fim daquele ano foi triste. Eu era só uma criança e mal conhecia Lola, mas depois que ela foi embora eu fiquei achando que o mundo era um lugar ruim e a vida uma coisa sem sentido.
 (continua na próxima segunda-feira)