Amigos do Fingidor

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Medicina e caos: onde está a doença?



João Bosco Botelho

 

            Não há como negar que os caminhos da Medicina, na busca da arqueologia da doença, caminham na direção das menores porções da matéria viva, para o átomo e as partículas subatômicas. Dessa forma, é possível articular processo teórico para rever alguns pressupostos da Medicina, tomando como parâmetro o caos, a instabilidade que persiste.  

          Apesar do grande avanço tecnológico, interferindo cada vez mais profundamente no domínio da natureza, persistem muitas questões fundamentais para que se possa compreender melhor a coisa em si (referida ao conceito kantiano). Contudo, deve ficar claro que essa abordagem está voltada à certeza da resolução do processo histórico do conhecimento, como ponte para transformar a coisa em si para coisa para nós.  

          O caos está presente na natureza circundante e se manifesta quando um objeto é submetido ao efeito de mais de uma força gerando situações impossíveis, com os atuais conhecimentos, de previsibilidade. Os exemplos dessas bizarras situações, desde as mais banais, como a tentativa de prever o próximo movimento de uma folha que corre livre ao sabor da corrente das águas de um rio, às complexas, como a bactéria sobrevive na corrente sanguínea, até às previsões climáticas (o movimento do ar). Nestes exemplos, mesmo com a ajuda dos supercomputadores, não é possível saber o que poderá acontecer à folha, à bactéria e se terá ou não tempestade, num determinado dia, mesmo utilizando os mais sofisticados e complexos sistemas de cálculos.   

          A maior dificuldade reside em separar a supremacia do caos à aparente estabilidade e ritmo da natureza. Aqui, tudo se apresenta dentro de um ritmo uniforme e eterno: a noite, o dia, as estações do ano, as estrelas e o movimento dos planetas. Sob a construção desse ritmo aparente, o homem começou a transformar a natureza e acumulou saberes. Do modo semelhante, se construiu a compreensão estática da saúde e da doença, onde parecia existir um divisor de águas entre o homem doente e o sadio, sendo aquele representado pela negação e este pela afirmação da vida.  

          O matemático francês Henri Poincaré (1854‑1912) demonstrou a instabilidade mesmo nos sistemas simples. Este pensador acabou ficando conhecido também pela avançada concepção acerca da comodidade da ciência, onde as teorias científicas traduziriam, unicamente, a arbitrariedade da razão com o objetivo de tornar inteligível um conjunto de fatos observados.                                

O atual entendimento de instabilidade regendo o conjunto que mantém a vida no planeta é majestoso e, ao mesmo tempo, reflexivo; também fantástico porque mergulhou os cientistas na incerteza angustiante porque colocou por terra as certezas acabadas.

 O estudo do caos está abrindo a matemática aos sentidos do homem, onde a capacidade de abstrair formas espaciais foi incorporada à geometria diversa da euclidiana. Mesmo com a indiscutível indeterminação de Heisemberg, os médicos e fisiologistas são capazes de imaginar como é a projeção espacial de uma molécula de ADN e o feedback (retroalimentação) dos hormônios hipotalâmico‑hipofisários no controle das glândulas endócrinas (tireoide, ovário, testículo, suprarenal etc.) para o equilíbrio de funções vitais de muitos animais, especialmente, nos humanos.  

          O avanço foi concomitante em várias direções. Um novo entendimento de espaço surgiu e envolveu o caos, trazendo subsídios ainda maiores e mais concretos para recompor o equilíbrio tridimensional.  

          Nesse contexto, parece razoável pressupor que as doenças, de certo modo compondo situações biológicas abstratas, nominadas pelo homem, no futuro, serão compreendidas como fenômenos dinâmicos, no tempo e espaço, capazes de serem estudadas fora do espaço euclidiano. Haverá tempo em que a Medicina perguntará: em qual espaço-tempo deseja estudar o hipertireoidismo?  

          O simples raciocínio da hierarquização orgânica (só estamos tratando dos seres vivos) pode reforçar essa suposição. Do organismo vivo extremamente complexo, como o corpo humano, até as partículas subatômicas, o caos pode passar sucessivamente pelos sistemas orgâ­nicos corpóreos (respiratório, digestivo, urinário etc.), órgãos, tecidos, cé­lulas, organelas (ribossomos, mitocôndrios etc.), moléculas, átomos e partículas subatômicas.             

          Sendo partes do mesmo todo é possível que a caoslogia contribua também para a melhor compreensão dos sistemas vivos sob o prisma da Termodinâmica. Hoje, continua sendo muito difícil entender o homem, como exemplo de sistema aberto, consegue manter a vida com rigorosa ordem interna e baixa entropia.  

           Na realidade, a saúde e a doença não existem separadamente, são partes do mesmo conjunto, e estão indissoluvelmente unidas no caos. Na realidade, esse é o maior paradoxo da Medicina: em qual dimensão da matéria o normal se transforma em doença e se, realmente, a doença e a saúde existem como a Medicina entende.