Amigos do Fingidor

domingo, 9 de junho de 2013

Platônica IX



Hiram Lopes

Com o Bacellar

Algumas vezes antes de dormir costumo exercitar a habilidade de encontrar com os mortos, na imaginação, e buscar neles uma opinião isenta dos fatos que ocorrem entre os vivos, pois imagino que estão libertos das paixões e tenham adquirido mais sabedoria. Nesses encontros, os mortos não me aparecem translúcidos, como os fantasmas da ficção, e nem flutuam, como balões de gás. Surgem com se fossem de carne e osso, comportando-se como se fossem vivos. Para que isto ocorra é preciso que o encontro se dê em locais onde eu não encontre nenhum conhecido meu, pois é necessário que o morto também seja visto por outros para que eu não pareça louco, conversando sozinho. Não sei exatamente porque, mas a presença de um conhecido não favorece esses encontros e então é fundamental que sejam ambientados em outras cidades.

Sendo assim, outro dia estive em Santiago do Chile e fui me encontrar com o Luiz Bacellar, o poeta. Preferi Santiago porque já estive lá uma vez e parecia a cidade apropriada para encontrar um poeta. Poderia ser também em Buenos Aires ou então em Paris, mas Santiago foi a escolhida por conta da lembrança do magnífico Andes e a emoção de ter visto pela primeira vez aquela cadeia de montanhas, vista inédita para um habitante da planície amazônica. Mas antes de relatar esse encontro eu gostaria registrar dois encontros que tive antes, a sós, com o Bacellar.

Conheci o Bacellar através do Cláudio Fonseca. Os dois eram muito amigos e o relacionamento parecia ser de pai e filho, mestre e pupilo ou de colegas de arte mesmo. Algumas poucas vezes almoçamos os três juntos e eu pouco falava e mais escutava. O Bacellar não me dava muita atenção, creio que me considerava uma espécie de satélite de outro satélite, mas eu não me importava, bastava-me usufruir da presença de um grande artista. Creio que nem soubesse meu nome, mas eu não ligava e nem dispensava esses convites.

Em um domingo pela manhã fui ao teatro assistir a um concerto com músicas de Ravel e Debussy. Fui só, a família estava viajando, e cheguei cedo. Logo chegou também o Bacellar, ele morava perto do teatro, quando me viu disse: “Vou ficar aqui contigo até meus amigos chegarem”, naquele tom que só os que não o admiram achariam que era arrogância. Foi um honra. Sentou-se ao meu lado, eu estava na primeira cadeira do corredor.

Aconteceu que o concerto começou e os amigos dele não chegaram. Fiquei contente com a companhia e, à medida que as músicas iam sendo executadas, ele ilustrava cada uma delas. A primeira foi Pavane pour une infante défunte, uma música delicada, com uma cadência lenta e envolvente. “Pavane era uma dança praticada nas cortes da Europa”, explicou, “dançada em movimentos lentos e elegantes”. Apreciei os comentários e me achava com sorte de ter um comentarista tão célebre e culto ao meu lado. Ele ia explicando todos os movimentos, os papéis dos instrumentos solo e os timbres dos metais, e o fazia em voz alta, sem se preocupar com os vizinhos. Comecei a ficar constrangido com o incômodo que com certeza causávamos aos outros que estavam ao nosso redor. Assim a coisa foi andando até que a orquestra começou a tocar o Bolero! A música começa com um flautim e uma caixa que acompanha toda a sua execução. Ele explicou: “Foi composta para um número de dança”, e foi falando, falando, eu começava a me angustiar, outros instrumentos começavam a participar da execução, a música aumentava o volume e ele também elevava a voz, e a caixa continuava tá-tátátá tá-tátátá tá tá tá-tátátá tá-tátátátátátátátátá, o meu constrangimento aumentava num crescendo, até que finalmente tudo acabou num arremate breve. Alívio! Acabou também a primeira parte e veio o intervalo. Ele localizou os amigos e se despediu: “Vou me encontrar com eles”.  Confesso que fiquei confuso entre o sentimento de satisfação de ter desfrutado sua companhia e ao mesmo tempo aliviado dos comentários importunos. Acabei por perder a chance de me apresentar formalmente e dizer meu nome, acreditava que ele não sabia.

O segundo encontro se deu muitos anos depois quando eu havia ido a um shopping center fazer uns pagamentos e fui almoçar em um restaurante de comida árabe. Já estava sentado quando ele surgiu e sentou-se à minha mesa, porém em diagonal: “para um não atrapalhar o outro”, explicou. Tá certo, pensei. Naquela época eu estava lendo o livro Cidade Antiga, cuja primeira referência me foi dada por um amigo juiz que me disse que era sobre a origem do Direito e ele o estava lendo para um curso de mestrado. Alguns meses depois, outro amigo me emprestou o livro dizendo que era sobre a origem das religiões. Nessa época estava encantado com a leitura e minha mulher e amigos de vez em quando eram obrigados a ouvir minhas interpretações do livro e os relacionamentos que fazia com os acontecimentos do dia a dia. Achei então oportuno falar do livro com o Bacellar. “Estou lendo Cidade Antiga”, eu disse. “De Fustel de Coulanges, li duas vezes, no original... um livro fundamental!”, arrematou. Fiquei admirado, eu nunca me lembrava do nome do autor e ele se lembrou de pronto! Já tinha lido duas vezes! Fiquei confortado com o comentário, pois compartilhava das mesmas fontes do Bacellar. Não pude ficar mais tempo com ele porque era precisava voltar ao trabalho, me despedi rápido e saí. Mais uma vez não criei uma oportunidade para ele saber meu nome.

Houve outro episódio marcante que foi uma palestra proferida por ele sobre o Ferreira Gullar. Eu havia lido no noticiário sobre o evento, mas foi uma leitura rápida e acreditei que o próprio Gullar estaria presente ao seminário. Localizei em casa o livro que tem aquele poema que fala das “hélices de hidrogênio” e o levei ao evento na expectativa de obter um autógrafo. Foi uma frustração e prontamente procurei evitar a gafe, escondendo o livro dos conhecidos. Imaginei que a gafe só se concretiza se o outro souber do ocorrido. É uma entidade das relações sociais. Por sorte ninguém fez qualquer comentário.

Da palestra, lembro-me que o nome Gullar vem de Goulart e dos comentários sobre o poema “O cheiro da tangerina”. O Bacellar apreciava bastante esse poema e o descreveu com grande entusiasmo e admiração. Lamentou, porém, não ter mais um exemplar do livro. Quando cheguei em casa corri para encomendar a compra de dois exemplares que chegaram pelo correio. Enviei um deles para ele através do Zemaria. Não me recordo de ter feito alguma dedicatória ao poeta, continuaria inominado para ele.

De volta então ao encontro imaginário em Santiago. Havíamos combinado de nos encontrar no Cerro de San Cristóbal, um morro que fica encravado na cidade, frequentado pelos moradores e turistas, para passeios e diversão. O local do encontro era em um café em frente à estação do teleférico, em um pátio voltado para a cidade e para os Andes. Era uma manhã ensolarada de domingo e a poluição era pouca, permitindo-nos apreciar as montanhas com suas neves eternas.

Ao chegar, ele já estava sentado, fumando um cigarro na piteira e havia uma caneca pousada na mesa. Cumprimentei-o e sentei-me na cadeira que indicou; ofereceu-me um cigarro. Era um Gauloises, famoso cigarro francês de tabaco forte, que aceitei imediatamente, vencendo mais uma vez a minha força de vontade de parar de fumar. Pedi uma cerveja e fui direto ao assunto: “Bacellar, o Cláudio não foi eleito para ocupar a sua cadeira na Academia”. Não conseguia imaginar sua reação, mas esperava que fosse com indignação, entretanto ele ficou calado, soltou uma baforada e permaneceu assim por uns instantes, olhando para as montanhas no horizonte.

Após esse breve momento eu resolvi provocá-lo. “Você não acha que a temática do Cláudio pode parecer antiquada para os nossos conterrâneos? Grandes apreciadores dos temas regionais, muitas vezes postos à mesa impregnados de pitiú, ao contrário de você que fez a feira e não escorregou na casca da banana?” Ele respondeu de pronto, como reprisando uma fala: “O Cláudio é um artista que cria obras de arte, como as oblatas em forma de rosáceas, tímpanos e claraboias das catedrais góticas.” Referia-se ao livro de poemas Vitrais. “São poemas cuja justaposição lembra o trabalho de puzzle dos sopradores e coloristas da guilda dos vidraceiros: grandes painéis de luz e cor, plenos de symbolismo mystico!”

Continuei instigando. “Você não acha que a Academia aderiu ao sistema de cotas e que a cota dos poetas diminuiu, por isto ele não foi escolhido?” Respondeu já indignado: “No momento em que as academias e grêmios preenchem suas vagas com mediocridades, a verdadeira poesia brota triunfante deste poeta de raça, profundo e criativo, uma verdadeira rajada de ar puro e renovador sobre o monturo de nossa poesia”. Perguntei por fim: “Que mensagem levo aos nossos conterrâneos?” Já tinha a resposta pronta: “O autêntico mérito é sempre desdenhado pela conspiração dos pobres de competência e de criatividade”. Palavras preciosas como o ouro em pó coruscante do El Dorado, porém ácidas como o suor de um guerreiro mura. Eu arfava com a emoção de seu pronunciamento, meu coração batia forte, parecia que ele também percebia que estava exaltado. Foi o bastante, levantou-se e sumiu entre os numerosos turistas e ciclistas que nos cercavam. Estava bem, ainda imortal, nada a temer por ele. Foi só e se bastava.