João Bosco Botelho
A
ausência de registros laicos proibindo ou punindo sugere que os métodos
abortivos utilizados como contraceptivos poderiam ter sido usuais na
antiguidade. Não é razoável pressupor a inexistência ou que não eram utilizados
na gravidez indesejada. Dois dos mais antigos textos legislando a ação médica,
o Código de Hammurabi, do século 17 a. C., e as leis de Eshnunna (1825‑1787 a.
C.), não fazem referência ao assunto.
Por outro lado, a leitura do juramento
de Hipócrates mostra a clara expressão contra o aborto dos médicos gregos da
Escola de Cós: "...Não darei venenos mortais a ninguém, mesmo que seja
instado, nem darei a ninguém tal conselho e, igualmente, não darei às mulheres
pessário para provocar aborto". É possível pressupor que essa passagem do
juramento de Hipócrates esteja estritamente ligada às interdições de qualquer
procedimento médico capaz de provocar a morte, semelhante ao da cirurgia para
retirar pedra na bexiga, já que ambos seriam capazes de matar o doente e nesse
caso não poderiam ser executados. A essência da estrutura teórica da Escola
hipocrática estava assentada na existência da Medicina e dos médicos para manter
a vida! Seria impensável aceitar qualquer a ação médica capaz de ocasionar a
morte do doente!
No
mesmo período, houve certa indulgência em Aristóteles (Política, VII, 4) que aconselhava a interrupção da gravidez frente
às necessidades médicas, desde que o embrião não tivesse recebido o sentimento
e a vida. Essa posição aristotélica valorizando “o sentimento e a vida” do
embrião como limite à prática abortiva serviu de instrumento teórico dos Doutores
da Igreja, em diferentes períodos, no medievo cristão, para proibir mais ou
menos o aborto. Sob outro argumento, teoricamente, as complicações do aborto
provocado são mais graves na medida do avanço da gravidez. Desse modo, não é
também possível dissociar a precaução de Aristóteles quanto as possibilidades
de o aborto causar a morte da gestante.
Após a cristianização das práticas médicas, na
Europa medieval, é fácil e imediato reconhecer a influência do pensamento
cristão nas leis sobre o aborto. No século 6, os visigodos adotaram a pena de
morte para quem quer que fornecesse drogas para provocar aborto. A mulher, se
fosse escrava, seria punida por meio de castigos físicos; se fosse livre, seria
degradada. No século seguinte a pena de morte passou a valer tanto para o
vendedor da droga como para o marido da gestante, caso este ordenasse ou consentisse
no crime.
Na França, até a Revolução Francesa, os médicos e parteiras
que praticassem aborto, quando descobertos, eram condenados à forca. Com o
advento da Revolução Francesa esta pena foi reduzida para vinte anos de cadeia.
Depois
de quase dois mil anos de limitações impostas pelos poderes laicos, a estimativa
do número de abortos ilegais, sob condições precárias de higiene, por ano, no
mundo, é impressionante: entre 46 a 55 milhões e 78% realizados em países subdesenvolvidos
e em desenvolvimento, como no Brasil, causando milhares de mortes por infecção.
Sob esse forte impacto, noventa e sete países, inclusive a Itália, possuem leis
que permitem o aborto até três a quatro meses da gestação.
As
análises dos dados da Organização Mundial de Saúde permitem assegurar que a
diminuição da perigosa prática do aborto como método anticoncepcional caminha
ao lado da educação sexual obrigatória nas escolas de ensino médio e da
melhoria socioeconômica das populações.