Amigos do Fingidor

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Aborto sob a vigilância laica



          João Bosco Botelho


A ausência de registros laicos proibindo ou punindo sugere que os métodos abortivos utilizados como contraceptivos poderiam ter sido usuais na antiguidade. Não é razoável pressupor a inexistência ou que não eram utilizados na gravidez indesejada. Dois dos mais antigos textos legislando a ação médica, o Código de Hammu­rabi, do século 17 a. C., e as leis de Eshnunna (1825‑1787 a. C.), não fazem referência ao assunto.
          Por outro lado, a leitura do juramento de Hipócrates mostra a clara expressão contra o aborto dos médicos gregos da Escola de Cós: "...Não darei venenos mortais a ninguém, mesmo que seja instado, nem darei a ninguém tal conselho e, igualmente, não darei às mulheres pessário para provo­car aborto". É possível pressupor que essa passagem do juramento de Hipócrates esteja estritamente ligada às interdições de qualquer procedimento médico capaz de provocar a morte, semelhante ao da cirurgia para retirar pedra na bexiga, já que ambos seriam capazes de matar o doente e nesse caso não poderiam ser executados. A essência da estrutura teórica da Escola hipocrática estava assentada na existência da Medicina e dos médicos para manter a vida! Seria impensável aceitar qualquer a ação médica capaz de ocasionar a morte do doente!
No mesmo período, houve certa indulgência em Aristóteles (Política, VII, 4) que aconselhava a interrupção da gravidez frente às necessidades médicas, desde que o embrião não tivesse recebido o sentimento e a vida. Essa posição aristotélica valorizando “o sentimento e a vida” do embrião como limite à prática abortiva serviu de instrumento teórico dos Doutores da Igreja, em diferentes períodos, no medievo cristão, para proibir mais ou menos o aborto. Sob outro argumento, teoricamente, as complicações do aborto provocado são mais graves na medida do avanço da gravidez. Desse modo, não é também possível dissociar a precaução de Aristóteles quanto as possibilidades de o aborto causar a morte da gestante.
 Após a cristianização das práticas médicas, na Europa medieval, é fácil e imediato reconhecer a influência do pensamento cristão nas leis sobre o aborto. No século 6, os visigodos adotaram a pena de morte para quem quer que fornecesse drogas para provocar aborto. A mulher, se fosse escrava, seria punida por meio de castigos físicos; se fosse livre, seria degradada. No século seguinte a pena de morte passou a valer tanto para o vendedor da droga como para o marido da gestante, caso este ordenasse ou consentisse no crime.

Na França, até a Revolução Francesa, os médicos e parteiras que praticassem aborto, quando descobertos, eram condenados à forca. Com o advento da Revolução Francesa esta pena foi reduzida para vinte anos de cadeia.

Depois de quase dois mil anos de limitações impostas pelos poderes laicos, a estimativa do número de abortos ilegais, sob condições precárias de higiene, por ano, no mundo, é impressionante: entre 46 a 55 milhões e 78% realizados em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, como no Brasil, causando milhares de mortes por infecção. Sob esse forte impacto, noventa e sete países, inclusive a Itália, possuem leis que permitem o aborto até três a quatro meses da gestação.

As análises dos dados da Organização Mundial de Saúde permitem assegurar que a diminuição da perigosa prática do aborto como método anticoncepcional caminha ao lado da educação sexual obrigatória nas escolas de ensino médio e da melhoria socioeconômica das populações.