Amigos do Fingidor

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O aborto entre o rigor do Didaqué e a teologia de Santo Agostinho



João Bosco Botelho

          A compreensão ético-teológica de Santo Agostinho (354‑430) se afastou da de Tertuliano e se aproximou da de São Jerônimo. Possivelmente para abrandar a interdição intransigente contra o aborto do Didaqué, manual ético‑moral, escrito nos anos 100, a análise agostiniana de modo genial reconstruiu a separação aristotélica etária dos fetos, o que possibilitou amenizar a proibição do aborto em até cinco a seis semanas de gravidez: “Pois uma vez que o grande problema da alma não pode ser decidido apressadamente com julgamentos rápidos e não fundamentados, a LEI não prevê que o ato seja considerado como homicídio, uma vez que não se pode falar de alma viva num corpo privado de sensações, numa carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos”.
          Na Idade Média, a Igreja cristianizou algumas comemorações oriundas do politeísmo. A da Natividade do Senhor, uma das primeiras, no fim do século 4, iniciando os atributos sagrados às concepções. Seguida da Natividade da Imaculada Conceição de Maria, celebrada no dia 8 de dezembro, e a da Anunciação, ou festa da concepção de Cristo, respectivamente nos séculos 6 e 7. Essas celebrações também contribuíram para impor maior simbologia sagrada à gestação.
          A dúvida sobre a data do início da anima­ção do feto, oriunda dos conceitos aristotélicos, retomada por Santo Agostinho, atravessou os séculos. O magnífico São Tomás (1225‑1274), mais próximo da teologia agostiniana, sustentou que só o aborto de um feto animado era homicídio. A força da moralidade tomista para a estrutura dogmática da Igreja influenciou decisivamente no afrouxamento da proibição oriunda do Didaqué.
          O papa Gregório XIV, em parte apoiado nas construções teóricas de São Jerônimo, Santo Agostinho e São Tomas de Aquino, revogou a Bula de Xisto V (1588), que punia civil e canonicamente os que praticassem o aborto em qualquer fase do feto.
           O retorno da Igreja, no século 19, ao rigor do Didaqué contra o aborto como método anticoncepcional, tem dois componentes inseparáveis: um teológico e outro político. O primeiro, teológico, promovido pelo papa Pio XI, acabou com a distinção multissecular de feto animado e não animado, oriundo do aristotelismo. O segundo, político, possivelmente relacionado à industrialização crescente do Ocidente junto à necessidade de mão de obra, já que historicamente os abortos atados às complicações, inclusive à morte da grávida, alcançaram muito mais as mulheres oriundas dos estratos sociais mais pobres.
          No famoso discurso dirigido às obstetras, em 1951, O Papa Pio XI se mostrou enfático ao atribuir vida intrauterina plena antes do nascimento e condenar o aborto em todas as formas: “Todo ser humano, até mesmo as criancinhas no seio materno, recebe o direito à vida diretamente de Deus... Não há nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, econômica, social, moral, que possa exibir título jurídico válido para dispor direta e deliberadamente de uma vida humana inocente...visando sua destruição”.

          O documento conciliar Gaudium et Spes, considerado progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição incondicional muito próxima do Ditaqué: “A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de cuidado e o aborto, como o infanticídio, são delitos abomináveis”.