João
Bosco Botelho
A compreensão ético-teológica de Santo
Agostinho (354‑430) se afastou da de Tertuliano e se aproximou da de São
Jerônimo. Possivelmente para abrandar a interdição intransigente contra o
aborto do Didaqué, manual ético‑moral, escrito nos anos 100, a análise agostiniana
de modo genial reconstruiu a separação aristotélica etária dos fetos, o que
possibilitou amenizar a proibição do aborto em até cinco a seis semanas de gravidez:
“Pois uma vez que o grande problema da alma não pode ser decidido
apressadamente com julgamentos rápidos e não fundamentados, a LEI não prevê que
o ato seja considerado como homicídio, uma vez que não se pode falar de alma
viva num corpo privado de sensações, numa carne não formada e, portanto, ainda
não dotada de sentidos”.
Na Idade Média, a Igreja cristianizou
algumas comemorações oriundas do politeísmo. A da Natividade do Senhor, uma das
primeiras, no fim do século 4, iniciando os atributos sagrados às concepções. Seguida
da Natividade da Imaculada Conceição de Maria, celebrada no dia 8 de dezembro, e
a da Anunciação, ou festa da concepção de
Cristo, respectivamente nos séculos 6 e 7. Essas celebrações também
contribuíram para impor maior simbologia sagrada à gestação.
A dúvida sobre a data do início da
animação do feto, oriunda dos conceitos aristotélicos, retomada por Santo
Agostinho, atravessou os séculos. O magnífico São Tomás (1225‑1274), mais
próximo da teologia agostiniana, sustentou que só o aborto de um feto animado
era homicídio. A força da moralidade tomista para a estrutura dogmática da Igreja
influenciou decisivamente no afrouxamento da proibição oriunda do Didaqué.
O papa Gregório XIV, em parte apoiado nas
construções teóricas de São Jerônimo, Santo Agostinho e São Tomas de Aquino, revogou
a Bula de Xisto V (1588), que punia civil e canonicamente os que praticassem o
aborto em qualquer fase do feto.
O retorno da Igreja, no século 19, ao rigor do
Didaqué contra o aborto como método anticoncepcional, tem dois componentes inseparáveis:
um teológico e outro político. O primeiro, teológico, promovido pelo papa Pio
XI, acabou com a distinção multissecular de feto animado e não animado, oriundo
do aristotelismo. O segundo, político, possivelmente relacionado à industrialização
crescente do Ocidente junto à necessidade de mão de obra, já que historicamente
os abortos atados às complicações, inclusive à morte da grávida, alcançaram muito
mais as mulheres oriundas dos estratos sociais mais pobres.
No famoso discurso dirigido às obstetras,
em 1951, O Papa Pio XI se mostrou enfático ao atribuir vida intrauterina plena
antes do nascimento e condenar o aborto em todas as formas: “Todo ser humano, até
mesmo as criancinhas no seio materno, recebe o direito à vida diretamente de
Deus... Não há nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma ciência, nenhuma
indicação médica, econômica, social, moral, que possa exibir título jurídico
válido para dispor direta e deliberadamente de uma vida humana inocente...visando
sua destruição”.
O documento conciliar Gaudium et Spes, considerado
progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição
incondicional muito próxima do Ditaqué: “A vida, uma vez concebida, deve ser
tutelada com o máximo de cuidado e o aborto, como o infanticídio, são delitos
abomináveis”.