Amigos do Fingidor

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

A boa morte



           João Bosco Botelho        

           Em alguns textos do período de Carlos Magno, no século 9, alguns cavaleiros, os mais audazes e valentes frente ao inimigo, relataram premonições da própria morte por meio de sinais de natureza sobrenaturais. Aqueles que morriam no curso de epidemias, inesperadamente, como na peste, eram considerados vítimas de morte fora do normal, da qual não era bom falar...
No medievo europeu, esses cavaleiros supuseram premonições sobre a própria morte. Os textos sobre o tema repetiam: “ele sabia que sua morte estava próxima...”. O aviso era materializado por meio de acontecimentos não usuais ou, muitas vezes, pelo simples convencimento da morte próxima. Quando a pessoa se convencia, aguardava a morte deitado, junto à família. Essa atitude expectante da morte é reconhecida em muitas esculturas sepulcrais, desde o século 12.
Nos dois séculos seguintes, outro rito fúnebre foi introduzido: o moribundo se lamentava das tristezas da vida, pedia perdão às pessoas próximas, recomendava os amigos a Deus, sempre próximo ao sacerdote encarregado da extrema-unção. Sob essa perspectiva, a morte constituía espécie de cerimônia pública, com livre entrada no quarto do moribundo, reunindo parentes, amigos, vizinhos, crianças de todas as idades. Não havia medo nem vergonha da morte inevitável. O número de pessoas que desejavam ver o parente ou amigo próximo da morte era tão grande, que os médicos, no final do século 16, se queixavam do inconveniente junto ao leito do moribundo.
Esses ritos da morte – boa morte – eram aceitos e cumpridos como parte da vida, sem emoção excessiva. Assim, incontáveis pessoas, na Europa central, no medievo, ricos e pobres, morreram junto aos parentes e amigos. Naquela época, representava a morte familiar, a boa morte.
Com o passar do tempo, os ritos modificaram para absorver o sentido dramático, de dor, inconformidade, repulsa à morte. O ritual da boa morte, inevitável, sereno, ao lado da família, amigos e vizinhos, foi sendo substituído por outro, dramático, doloroso, causando sofrimento nos que assistiam.

Algumas construções metafóricas tratando dessa fase interpretando a morte como satânica são as “danças macabras”, no leste da França a na Alemanha. O horror da morte, que desfigura a pessoa amada, reconhecido na feiura, na agressão à vida que poderia ter continuado se não fosse ancorada na maldade diabólica. O cheiro pútrido do corpo decomposto pela morte toma o sentido macabro. Esse sentido repugnante, na segunda metade do século 20, deslocou a morte para o hospital. Tornou-se proibida a morte ocorrer na casa, junto à família.