Amigos do Fingidor

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Repulsa à morte: o grito pela vida



         João Bosco Botelho

A necessidade incontrolável de dar sentido à vida, diferente da dos outros animais, e de minimizar a morte, expressa com transparência na História, contribuiu para materializar, como opostos, a saúde e a doença. A primeira, sinônimo de vida, ficou ligada ao bem, ao bom, ao belo; a segunda, ao mal, porque sinaliza e antecipa a morte, sempre temida.
         A pulsão inata para desvendar as formas visíveis, em especial as do corpo, dotado com propriedades sensíveis de comunicar-se e locomover-se, para fugir da dor e do desconforto, pode ser considerada como a primeira verdade material. É verdadeira em si mesma, porque dá forma ao viver, num movimento caleidoscópico, composto pela carnalidade da pele quente, realidade dos sentidos, da respiração e do ritmo cardíaco. Atinge e entrelaça o ser no mundo.  
         Quando a morte advém, como antítese da vida, descolora a pele, resfriando-a e tornando-a insensível ao pior dos tormentos: a dor. O movimento respiratório e o coração param. O corpo desfigurado pelo rigor cadavérico enche de sentido a vida dos que choram. É quando o vivo se apercebe da própria existência e rejeita a morte refletida no corpo endurecido do outro, sem movimentos, na pele indolor e fria.
As pessoas para reafirmarem as vidas humanas como fatos permanentes utilizam a ficção, vivificam o corpo inanimado e prolongam a crença do renascimento, com prêmio ou castigado, no após a morte, nos moldes da vida vivida.
É a dialética fundamental entre a vida e a morte, atando com ligadura indissolúvel o ser-tempo (homem vivo) ao ser-não-tempo (homem morto). Ambos são partes da mesma realidade, por isso, essenciais. Contudo, somente um percebe o outro. Por essa razão, é capaz de transfigurar, quando aprouver, o objeto perceptível (ser-não-tempo), pensá-lo vivo, renascido, em outro lugar.
A técnica humana, transformadora da natureza circundante, é o pilar sustentador que aprimora e prolonga os sentidos, marcando a separação do ser-tempo (homem vivo) do objeto (homem morto) dos outros animais. Os saberes historicamente acumulados buscam na repulsa à morte as razões para viver com conforto, sem frio, sem fome.
Os atuais saberes ocidentais, em parte marcados pela influência cultural greco-romana, uniram esse patrimônio, perdido nos confins enigmáticos do tempo indivisível. A pólis, organizada à semelhança do corpo saudável, passou a ser compreendida como um organismo vivo. Ao contrário, o caos social era sinônimo de doença. O administrador competente era aquele que curava a sociedade deficitária.
         O poder de curar pessoas e sociedades e adivinhar os infortúnios, evitando a enfermidade, para melhor organizar um determinado grupo social, oferecendo a saúde e adiando a morte, tem sido historicamente utilizado pelo poder político, como mecanismo de coesão e controle sociais.
         O sofrimento causado pela morte da pessoa amada determina transtornos complexos incomensuráveis, em diferentes níveis do corpo, trazendo sinais físicos de dores, variando em cada pessoa. O pavor à morte, entendida como sensação de perigo iminente, interferindo na vida dos que veem a morte do outro, provoca sofrimento. É lógico pressupor que as atitudes específicas – como pensar na vida após a morte – minorando o sofrimento frente à morte temida, tenham sido valorizadas e continuamente aperfeiçoadas pelas linguagens-culturas pelo fato de ordenar a volta do bem-estar.