Zemaria Pinto
Cláudia
O que dizer da mulher
com quem vivi nove anos, sem sentir por ela nada além de amizade? Da mesma
idade que eu, quando nos casamos ainda havia muito a descobrir, o que se
esgotou em menos de seis meses, com a primeira gravidez. Após a segunda
gravidez, minha vida com Cláudia era apenas uma fachada com os sinais
inevitáveis do desgaste que a chuva e o sol provocam em qualquer fachada.
Cláudia era a senhora da casa, abdicando de seus estudos e planos de futuro,
eu, o provedor – saía às 7 e nunca voltava antes das 21. O casal criança
crescia sem pai e com excesso de mãe. Nos fins de semanas, jogos, pescarias,
serenatas, cervejadas. Para mim, era o paraíso: tinha todas as mulheres que eu
queria, roupa lavada e cama arrumada. Numa madrugada de sábado, bêbado,
encontrei na garagem duas malas com minhas roupas e utensílios de uso mais
imediato. Com uma calma inesperada e indescritível, Cláudia falou apenas algo
como “quando você se organizar, volte para pegar seus discos e livros”. E nada
mais. Na sentença de desquite, o juiz determinava que eu podia ver as crianças apenas
aos sábados, o que me fez mudar radicalmente meus programas de farras. Aos
poucos, no entanto, fui renovando a confiança de Cláudia, e as visitas passaram
aos domingos, quando saíamos todos – ela e Safira, inclusive – para almoçar. As
crianças cresceram, os almoços foram se esfumando em mera lembrança. Vieram os
netos. Cláudia morreu antes de vê-los. Tento lembrar seu jovem rosto redondo,
sorridente, mas só me vem à mente a face encovada, pálida, a cabeça sem pelos,
a máscara da morte.