Amigos do Fingidor

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Artemis Veiga



Tenório Telles

O médico grego Hipócrates cunhou uma das frases mais expressivas sobre o sentido da existência e o caráter efêmero de todas as coisas sob o sol: “A vida é curta, mas a arte é longa, e para dominar a arte e acrescentar-lhe ao patrimônio humano alguma coisa, é necessário, antes de tudo, que a brevidade da vida se multiplique no trabalho, se enriqueça no amor, se ilumine no ideal e se tempere na luta”.
A frase de Hipócrates, considerado o pai da medicina, surgiu-me em meio a uma experiência dolorosa, vivida esta semana: a morte da professora Artemis Veiga. Recebi a notícia quando partia para um compromisso em Careiro Castanho. A manhã estava bela e clara. Pedi ao condutor que me levasse à funerária para o último encontro com aquela que tanto enriqueceu de sabedoria e beleza a minha vida. Difícil vê-la tão frágil e indefesa – ela que tanto amara os livros, a poesia e a arte. Junto ao seu corpo, um filme me passou pela mente: uma sequência de fotogramas de vários momentos – lembranças das aulas na Universidade, das conversas sobre seus autores prediletos, literatura policial, pintura impressionista – seu fascínio por Monet, Renoir... Os cafés na companhia de sua mãe, dona Cecília. Aprendi com ela a ler poesia, a sentir a vibração das palavras, a beleza das formas. As tardes em sua casa eram mágicas: os poemas ditos em sua voz grave. A audição de músicas que a encantavam e que encantaram minha vida.
Professora da Universidade Federal do Amazonas, Artemis foi uma profissional rigorosa e apaixonada pelo seu trabalho. Suas aulas de literatura eram momentos de encantamento. Com o brilho de sua inteligência, seu humor, transformava esses encontros em descobertas sobre a magia das palavras, o caráter plurissignificativo da linguagem. Enfim, a literatura... esse mundo multifacetado como um calidoscópio e, ao mesmo tempo, revelação – da vida, da condição humana e da força criativa dos artistas. Artemis Veiga ensinou aos seus alunos um jeito diferente de olhar o mundo e de ler os textos. Lembro-me da maneira como ia desvelando as palavras dos poemas – como se fosse tirando os véus e desnudando a alma encarnada nos vocábulos, nas frases. Aprendi, com suas lições, que ler é um exercício de mergulho – e quanto mais profundamente mergulharmos, mais seremos capazes de apreciar a riqueza e a verdade essencial de uma obra, de uma música, de uma pintura. Por tudo isso – pelo seu magistério, pela sua sabedoria, pelas sementes que plantou no nosso ser, pelo desassossego que despertou em todos nós – ela sobrevive em nossas lembranças e no que somos. Sem a presença dela em minha vida e formação – muito de mim não teria sido.
Outro aspecto da existência de Artemis Veiga que me despertou  respeito foi a capacidade de renúncia e o cuidado que tinha com sua mãe. Dona Cecília era uma leitora compulsiva e uma mulher ousada e de um humor inquebrantável. Mesmo quando já estava debilitada pela idade e pela doença não perdeu a verve. Artemis a acompanhou estoicamente na sua longa travessia. Mas não foi só isso. Poucos sabem que foi uma poetisa delicada e ciosa de seu trabalho criativo. Talvez por sua timidez e autoexigência não publicou seus poemas. Espero que sua família, especialmente seu irmão, o escritor Frederico Veiga, considere a possibilidade de reuni-los em livro. Estas palavras escritas com o coração são para eternizar minha gratidão por essa professora especial e celebrar a sua memória. Este “textículo” [seus alunos sabem do que se trata!], portanto, é um testemunho de sua passagem por este mundo tão precário e também um registro de seu legado. Artemis Veiga multiplicou a vida, que é breve, no seu trabalho e a temperou na luta.   

                                    Nota: Artemis Veiga nasceu no dia 30 de julho de 1946 e faleceu no último dia 28 de abril.

Quase toada
(para um menino-muito-meu-amigo)

Artemis Veiga

Creio em ti, menino-vadio
e no teu silêncio puro
só quebrado
pelo pranto sem lágrimas
contido num único soluço
que tua voz não realiza...

Creio em ti, menino-grande
e nos teus sonhos encantados
que acalantam
segredos de coisas
eternas
nas curvas turvas
da madrugada...

Creio em ti, menino-noturno
e no teu silêncio grave
machucado
por presenças impossíveis
que mastigam
solidões gêmeas
entre gritos estrangulados...

Creio em ti, menino-trazverso
e nas tuas tramas
claras e cheias
de palavras perfeitas
urdidas
no riso matreiro
e no hálito de noite
que te inaugura
em azul-grávido
de certezas.

(Publicado na antologia Marupiara  novos poetas do Amazonas, em 1988).