Amigos do Fingidor

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Um anjo terrível



Inácio Oliveira


Pense em tudo aquilo que poderia ter sido e que não foi. Pense em quantos mínimos acasos fizeram sua vida tomar um rumo que você jamais escolheria. Pense naquele preciso instante em que você quis partir, mas na última hora decidiu ficar para depois perceber que ter ido era tudo que devia ter feito. Pense nas longas filas nos supermercados, nos bancos e nos cinemas. Pense nas horas desperdiçadas no trânsito das cinco da tarde. Pense nas pessoas que não usam desodorantes dentro dos ônibus lotados às sete da manhã. Pense naqueles que perderam um grande amor por um gesto, uma palavra ou um silêncio. Pense num rapaz que anotou os números que seriam sorteados na mega-sena, mas na hora de comprar o bilhete decidiu comprar ração para o cachorro. Pense num homem que perdeu as melhores horas da sua vida montando celular numa fábrica do Polo Industrial de Manaus. Pense numa torneira pingando a noite toda num quarto esquecido no fim do subúrbio onde alguém morre lentamente por falta de cuidados, amor e antibióticos. Pense na chuva caindo sobre um telhado onde todos estão mortos. Pense naqueles que partiram sabendo que jamais iriam voltar. Pense num louco sentado na praça conversando com a mãe que já morreu. Pense num homem que saiu de casa magoado com sua mulher e seus filhos e que morreu em seguida atropelado na rua. Pense numa pessoa que será enterrada numa vala comum sem direito a nenhuma lágrima. Pense num homem com a mãos sujas do sangue de outro homem. Pense num índio que teve seu corpo queimado numa praça de Brasília. Pense nas mulheres mutiladas, imprestáveis para o amor. Pense na pedofilia. Pense naqueles que sofrem nos hospitais e nos enterros. Pense num homem que deu um tiro dentro da própria boca e não morreu. Pense no câncer em metástase, na peste negra ou na aids.  Pense num homem deitado em posição fetal no chão frio de um cárcere, cujo último desejo é voltar para o útero, qualquer útero. Pense em alguém que foi comido pelas piranhas no fundo escuro de um rio. Pense num jovem que teve os testículos eletrocutados dentro de uma sala do exército em 1964. Pense num longo e terrível dia de fome. Pense na repetição, sempre possível, de Auschwitz. Pense numa tarde remota em Hiroshima onde a paisagem nunca mais foi a mesma. Pense no Estado islâmico. Pense na agonia impensável de uma criança no momento exato em que ela nasce. Agora imagine que um anjo terrível varresse a terra com sua espada de fogo e os homens sacrificados pedissem perdão: Não Peça! Não Peça!