Amigos do Fingidor

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Separando a medicina dos ritos de cura



João Bosco Botelho

Em contraponto à cura mágica da doença entendida como forma de castigo aos pecadores, as práticas médicas laicas constroem e reconstroem a busca da materialidade da doença. Desde o século 4 a.C., na Escola Medica de Cós, sob a liderança de Hipócrates, a teoria dos Quatros Humores, idealizada por Políbio, iniciou o processo para retirar dos deuses e deusas a primazia da saúde e da doença. Por essa razão, usando a linguagem de Bachelard, eu a entendo como primeiro corte epistemológico na busca da materialidade da doença.
         A associação entre as idéias da Escola Médica de Cós e a filosofia jônica possibilitou avanço gigantesco ­— a Medicina como Paideia — estabelecendo a ponte que ligaria, para sempre, a busca laica da causa das doenças.
A Medicina como Paideia abriu o caminho ao avanço da medicina oriunda das universidades. É possível compor cinco alicerces fundamentais da physis, da estrutura teórica jônica, embutidos na Medicina como Paideia:
­— Como universalidade e individualidade: todas as coisas têm a sua physis própria, os astros, os ventos, as águas, os medicamentos, o homem com as suas partes e as doenças (Das Epidemias, distingue: ”...a physis comum de todas as coisas, da physis própria de cada coisa”;
­— Como princípio: a physis é o princípio (arkhé) de tudo que existe (Sobre os Lugares e o Homem, lê-se: “A physis do corpo é o princípio da razão da Medicina”).
­— Como harmonia: na sua aparência e na sua dinâmica a physis é harmoniosa; é a ordem que se realiza com beleza. A natureza é harmoniosa e produz harmonia;
­— Como racionalidade: a natureza é racional em si mesma. Por esta razão existe uma fisiologia; a ciência na qual o logos do homem se harmoniza diretamente com os logos da natureza;
­— Como divindade: a physis é em si mesma divina.
Esse é um dos aspectos mais interessantes na Medicina, na Grécia, do século 4 a.C.: mesmo sem ataques aos deuses protetores da saúde, em especial, ao deus Asclépio, os médicos de Cós e os filósofos estabeleceram elos duradouros entre o binômio saúde-doença com a natureza circundante, como está presente na introdução do manuscrito Dos Ventos, Águas e Regiões, de autor desconhecido, escrito no século 4 a.C. (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855. p. 1050):
Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em primeiro lugar deve ter presentes as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto à sua essência especificada e quanto às suas mudanças. Quando um médico chegar a uma cidade desconhecida, deve determinar, antes de mais nada o que se refere às águas e à qualidade do solo, pois a mudança nas doenças do homem, está relacionada com a mudança do clima”.

Não é demais repetir que Platão (Político, 296a-b-c) sistematizou o pensamento corrente da época ao descrever a nova postura do médico e a do político. Ambos, baseados nos respectivos saberes, deveriam, sempre que necessário, intervir na sociedade para promover melhoras.