Amigos do Fingidor

quinta-feira, 21 de maio de 2015

30 notas sobre a má poesia, à margem da despoesia de Franciná Lira



Zemaria Pinto

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
(Carlos Drummond de Andrade, em “A flor e a náusea”)

1.               Serei acusado de desagregador e intolerante pelos corporativos, que se escondem atrás de coletivos para mascarar a mediocridade individual. Serei denunciado e processado por escrever ofensas morais a pessoas de caráter ilibado e comportamento inatacável, conforme manda o figurino das folhas sociais. Algum subacadêmico parnasiano, que se masturba lambendo adjetivos e advérbios, me acusará de virulência verbivocovisual, sem ter a mínima ideia do que seja isso. Vão me chamar de arrogante, soberbo e presunçoso. Serei tratado como um leproso, cuja visão repulsiva nauseia os sentidos acostumados a panoramas paradisíacos, perfumes exóticos e sons celestiais – ainda que o paraíso não passe de uma sórdida favela, as flores podres estejam misturadas às fezes dos porcos e o som seja um mix de forró e funk.
2.               Mas não poderão me acusar de desonestidade ou mistificação: cumpro minha missão de professor e de crítico.
3.               A poesia que se produz nesta cidade por menininhas tolinhas patinando no ensino médio, universitárias temporãs que não sabem a diferença entre poesia e poema, senhoras quarentonas solitárias que se descobriram tardiamente poetisas ou senhores de todas as idades com o miolo amolecido pelo calor equatorial e pelo excesso de guaraná em pó, é motivo de riso. “Poetas” e “poetisas” acreditam-se ungidos pelos deuses porque têm seus trabalhos escolhidos para participar de alguma “antologia nacional”, em “regime cooperativo”. Desconhecem a maldição que recai sobre os verdadeiros poetas.
4.               A poesia de verdade não fala de amor, só de ódio. Não toca em sexo, mas em tortura. Não trata de abandonos, fixa-se em assassinatos. Não fede a rosa, mas cheira a pus. A verdadeira poesia não dá desconto nos hotéis vagabundos do Centro.
5.               A poesia é um estado do ser, contemplação mí(s)tica, o i/logismo a serviço do ir/racional: a poesia é.
6.               Poesia é arte, não é masturbação.
7.               Eu já disse que há uma enorme carga de poesia em Grande Sertão: Veredas, em A Paixão Segundo GH. Há poesia num quadro de Van Gogh, num filme de Herzog, num pôr-do-sol no rio Negro, num fim de tarde em São Paulo, num passo de contradança, e, com o perdão da má palavra, também se encontra poesia num sorriso de criança. Especialmente, quando ela está morrendo de fome.
8.               Conclusão: a poesia não precisa do poeta, porque a poesia pode estar em qualquer lugar. É ter sentidos para sentir – olhos para ouvir, nariz para escutar, ouvidos para cheirar, mãos para ver e língua para tatear.
9.               Por que, então, esses poetaços infestam o planeta com papel borrado pelas suas banalíssimas dores de corno, suas rimas infinitivas, seus malditos adjetivos, sua falta de ritmo, sua métrica atravessada, sua ignorância da tradição?
10.           O prefixo des- denota oposição, negação ou falta, caracterizando-se ainda por reforçar a intensidade negativa do que se quer exprimir. Despoesia, portanto, é ausência de poesia. É a negação do estado poético. É não-poesia.
11.           É despoesia, pois, o que os poetastros fazem.
12.           E o que a “poetisa” Franciná Lira tem a ver com tudo isso? Ela reservou para si um lugar na crônica cômica do Amazonas ao escrever o mais ridículo de todos os livros da poesia amazonense desde a Muhuraida. A concorrência é grande, é verdade, mas a “poetisa” ganha fácil. A começar pelo título tautológico: A rosa e o beija-flor – beija-flor e outros poemas.
13.           As orelhas trazem um poema cada, e a quarta capa, um terceiro poema. Para o leitor de prateleira, deveria bastar o título do primeiro: “Amar é”. Além do cacófato explícito, o plágio descarado da fórmula desgastada há mais de 30 anos do casal de olhar maconhado, dizendo coisas infames, do tipo: “amar é... viver um dia de cada vez.”; ou “amar é... deixar ele ficar com o controle remoto.” Para a “poetisa” Lira (essa lira deve ser uma evocação da moeda, não do instrumento milenar), entre outras sandices, “amar é querer você sempre ao meu lado”.
14.           Indo direto para o miolo do livro, dividido em três partes: “A rosa e o beija-flor” (transcreva a expressão no Google e veja quanta originalidade...); “Fileo” (poemas dedicados, como o título tolo, de cultura de almanaque, sugere); e “Diário” (diz-que sob influência de Drummond; e agora, José?).
15.           Diabéticos mantenham-se longe da primeira parte do livro: “Quando o amor acontece / o banco da praça adormece”; para não ver a sacanagem, talvez...; “Na loucura do amor / beijo-te sem demora”; “Amo. / simplesmente amo”; “O doce sabor do desejo está em teus beijos”[1]; e por aí vai: desperdício de papel e tinta...
16.           As imagens são até engraçadas, de tão pueris: “Crepúsculo sombrio, multicor.” Se é sombrio, como pode ser multicor? “Universo solitário, sem calor.” Se universo é um conceito totalizante, como pode ser só? E que importância tem a temperatura? “Solidão que sozinha passo”[2] – é uma espécie de refrão, quatro vezes repetido no “poema”: de novo, a miserável tautologia – solidão sozinha... Ora, bolas!
17.           A recorrência rosa/beija-flor, de óbvia conotação sexual, espalhada em todo o livro, tem seu coroamento na tentativa de poema “Primavera”: “A primavera chegou! / O sol está surgindo... / A natureza está em festa! / Meu jardim está florido. / É primavera!” Nada poderia ser pior!
18.           Mas claro que poderia! “Crajiru, o que fazes aqui? / Vivo verde que desinflama, / Peço-te que cures o meu coração / Que, no asfalto, desfalecida estou!” (“Refúgio”). Sério, é a “isso” que Franciná Lira chama de poesia influenciada por Carlos Drummond de Andrade!!! PQP!!! Todo mundo em coro, de novo: PQP!!!   
19.           É desnecessário dizer que a “poetisa” não tem nenhuma noção da técnica poética. Ela não sabe o que é ritmo, não sabe extrair música do poema. Por isso, a maioria de seus pretensos textos não passam da mais reles prosa, como neste “Angelo”, da segunda parte: “Existem sonhos que levamos anos para realizá-los / outros que em toda existência não realizamos...” Já sabemos que não há música, tampouco imagens, então vamos ao nível das ideias: tente entender a complexidade da relação “sonhos x tempo” – tem a profundidade de um vaso...!
20.           No capítulo recorrência tautológica: “O relógio do tempo não para” (“Cais”). Bolas, ora! Há clichê mais estúpido que “relógio do tempo”? Nem “luar de prata” ou “aurora da vida”... “Emana a escuridão sombria” (“Helena”); escuridão sombria? Qual seria o tom dessa escuridão? Violeta, marrom, verde-musgo, amarelo-bosta?
21.           O prêmio de “poema” mais ridículo do livro, uma escolha dificílima, vai, pela soma dos vetores, para o que homenageia o patrocinador da edição, o refrigerante Guaraná Tuchaua. Vou me poupar de citá-lo na íntegra, pois não conseguiria conter o vômito, vai apenas a quadra final: “Sou caboclo / sabor guaraná. / Na Amazônia, / sou Tuchaua!”
22.           Pausa para uma pergunta indiscreta: de onde o vomífico xarope busca recursos para suas investidas pseudoculturais? Dos cofres públicos, certamente: é o meu, o seu, o nosso dinheiro usado para espalhar lixo irreciclável na superfície do planeta doente.
23.           Não vou falar dos erros de digitação e pontuação, que devem ser creditados à tosca edição, afinal o negócio dos caras é vender água suja com açúcar, não fazer livros. Mas não resisto a registrar a ousadia da “poetisa” ao forjar palavras: “frenetismo das ondas”, por exemplo, usado duas vezes (“Cais” e “Naiá”). Alguém aí do outro lado sabe o que é frenetismo? Nem eu. Mas no capítulo palavras doidas, leva o prêmio “mantenho-me sangrante”, em “T.P.M” (sic): é fácil adivinhar o que a “poetisa” quis transmitir...
24.           Inventar palavras sem querer é ignorância, usá-las mal, entretanto, é apenas lambança, porque as imagens não se realizam: “coração latente” (“Pictórica”), por exemplo, é claro que a infeliz autora quis dizer latejante... “Céu, terra, água e mar / gotejam em arco-íris” (“Pictórica”): de que será que ela pensa que o mar é feito, senão de água?; “Sou a aurora dos teus sonhos, / A sinestesia da existência tua” (“Cavalete”). Eu garanto que essa senhora, que não sabe usar nem os seus cinco sentidos, jamais entenderá o conceito de sinestesia – para ela, deve ser apenas uma palavra bonitinha, que ela quer tornar ordinária...
25.           Às vezes, o humor é involuntário, vejam: “Eu não quero ser prefeita.” (“Ser ou não ser”). No mesmo “poema”, mais adiante, ela afirma que quer “Sobreviver ao capitalismo. / Sobreviver ao socialismo insocial, / Sobreviver ao modernismo imoral!”. Parece pavulagem, mas é apenas parvoíce! Como diria aquele conhecido e folclórico ex-prefeito, que tanto mal fez a esta cidade, “Então, morra!”
26.           Agora, falando sério. “Monossilábico” é o “poema” que traduz com perfeição a “poesia” da “poetisa” Franciná Lira: “Muito ouço, / Nada falo. / Quando muito falo / Nada digo...” Sem comentários, é autoexplicativo.  
27.           Alguém percebeu onde entra a influência de Drummond, que, ela diz, começou aos 14 anos? Pura mistificação... Dando “palestras” a jovens desavisados, orientados por professores que mal leram Casimiro de Abreu, a “poetisa” cria para si um falso passado. Porque se em 30 anos isso foi tudo o que ela aprendeu com Drummond, trata-se de um caso perdido: a primeira coisa a aprender com Drummond é a ter autocrítica, palavra que a “poetisa” desconhece...
28.           O saudoso Anibal Beça, que vivia repetindo o bordão de Américo Antony – “ou é muita poesia ou muita porrada!” –, dizia, sempre muito sério, que não havia poeta tão ruim que não cometesse pelo menos um bom poema, ou pelo menos uma boa estrofe – na pior das hipóteses, um verso pelo menos razoável. E citava, de memória, exemplos que comprovavam sua tese, do estrelado J. G. de Araújo Jorge até obscuros e pretensos poetas de nosso amazônico e provinciano convívio.
29.           Não viveu bastante o grande Anibal para conhecer Franciná Lira, a negação definitiva de sua generosa tese.
30.           E para não dizer que só falei de fezes, transcrevo um poema de Gregório de Matos (1636-1695), com o mesmo tema da indigitada “poetisa”:

Se Pica-flor me chamais,
Pica-flor aceito ser,
mas resta agora saber,
se no nome que me dais,
meteis a flor, que guardais
no passarinho melhor!
Se me dais este favor,
sendo só de mim o Pica,
e o mais vosso, claro fica,
que fico então Pica-flor.


Para conhecer melhor a “poetisa” Franciná Lira, leia a crônica de João Sebastião:






[1] Títulos: “Quando o amor acontece”, “Desejo”, “Amo” e “O sabor do desejo”.
[2] Títulos: “Noite” e “Solidão”.