Amigos do Fingidor

terça-feira, 25 de abril de 2017

A menina que roubava folhas de livros



Pedro Lucas Lindoso

Assisti a um filme americano chamado “A menina que roubava livros”. Durante a Segunda Guerra Mundial, uma jovem garota consegue sobreviver na Alemanha nazista através dos livros que ela rouba. Ajudada por seu pai adotivo ela aprende a ler e partilhar livros com seus amigos, incluindo um homem judeu que vive na clandestinidade em sua casa. O jovem judeu escondia-se para evitar ser morto pelo exército nazista.
A garota desta crônica, Silvia, é amazonense, natural de Anori. Veio para Manaus “deportada”, segunda ela mesma. Seus pais, produtores rurais no interior, queriam evitar o casamento de Silvia com algum rapaz não recomendado. E Silvia, mesmo apaixonada, queria estudar e ser alguém na vida.
As dificuldades de uma garota séria e determinada, vinda do interior e com poucos recursos, dispensam maiores comentários. O fato é que ela trabalhava e estudava com afinco.
Silvia, poetisa e professora aposentada, participa de um projeto da ABEPPA – Associação Brasileira de Escritores e Poetas Pan-Amazônicos – que leva livros para bibliotecas do interior. Ao falar sobre o projeto, Silvia se enche de entusiasmo. Percebi que aquilo parecia ser uma espécie de catarse.
A verdade é que Silvia, quando estudante adolescente, não tinha tempo de fazer todas as tarefas de casa. Frequentava a biblioteca pública na hora do almoço. Mas o tempo era curto. Então Silvia arrancava folhas dos livros para terminar as tarefas entre uma aula e outra. No dia seguinte, Silvia diligentemente recolocava as folhas nos livros. Segundo ela, os restauros eram caprichados e o “crime” ficava quase imperceptível.
 A psicanálise talvez explique esse entusiasmo de Silvia pelo projeto da ABEPPA. Sob a óptica da psicanálise, catarse é o experimentar da liberdade em relação a alguma situação opressora, através de uma resolução que se apresente de forma eficaz. Ao colaborar para que estudantes do interior tenham acesso aos livros, Silvia se livra de um sentimento de culpa por ter dilacerado alguns livros didáticos da Biblioteca Pública do Estado.
Disse a Silvia que ela não cometeu crime nenhum. Se a menina alemã que roubava livros foi perdoada, imagine ela que só cometeu pequenos furtos de uso.
Disse a ela que no furto de uso, ocorrem dois requisitos: o objetivo de uso momentâneo ou por curto período da coisa e a devolução espontânea e em sua integralidade do objeto furtado. Disse ainda que o furto de uso não se enquadra no Código Penal. O ato é considerado atípico e não passível de pena na esfera criminal.
O mundo estaria bem melhor com mais pessoas que arriscam tudo para ler e ter acesso a um bom livro.