Pedro Lucas Lindoso
Assisti a um filme americano
chamado “A menina que roubava livros”. Durante a Segunda Guerra Mundial, uma
jovem garota consegue sobreviver na Alemanha nazista através dos livros que ela
rouba. Ajudada por seu pai adotivo ela aprende a ler e partilhar livros com
seus amigos, incluindo um homem judeu que vive na clandestinidade em sua casa.
O jovem judeu escondia-se para evitar ser morto pelo exército nazista.
A garota desta crônica,
Silvia, é amazonense, natural de Anori. Veio para Manaus “deportada”, segunda
ela mesma. Seus pais, produtores rurais no interior, queriam evitar o casamento
de Silvia com algum rapaz não recomendado. E Silvia, mesmo apaixonada, queria
estudar e ser alguém na vida.
As dificuldades de uma
garota séria e determinada, vinda do interior e com poucos recursos, dispensam
maiores comentários. O fato é que ela trabalhava e estudava com afinco.
Silvia, poetisa e professora
aposentada, participa de um projeto da ABEPPA – Associação Brasileira de
Escritores e Poetas Pan-Amazônicos – que leva livros para bibliotecas do
interior. Ao falar sobre o projeto, Silvia se enche de entusiasmo. Percebi que
aquilo parecia ser uma espécie de catarse.
A verdade é que Silvia,
quando estudante adolescente, não tinha tempo de fazer todas as tarefas de
casa. Frequentava a biblioteca pública na hora do almoço. Mas o tempo era
curto. Então Silvia arrancava folhas dos livros para terminar as tarefas entre
uma aula e outra. No dia seguinte, Silvia diligentemente recolocava as folhas
nos livros. Segundo ela, os restauros eram caprichados e o “crime” ficava quase
imperceptível.
A psicanálise talvez explique esse entusiasmo
de Silvia pelo projeto da ABEPPA. Sob a óptica da psicanálise, catarse é o
experimentar da liberdade em relação a alguma situação opressora, através de
uma resolução que se apresente de forma eficaz. Ao colaborar para que
estudantes do interior tenham acesso aos livros, Silvia se livra de um
sentimento de culpa por ter dilacerado alguns livros didáticos da Biblioteca
Pública do Estado.
Disse a Silvia que ela não
cometeu crime nenhum. Se a menina alemã que roubava livros foi perdoada,
imagine ela que só cometeu pequenos furtos de uso.
Disse a ela que no furto de
uso, ocorrem dois requisitos: o objetivo de uso momentâneo ou por curto período
da coisa e a devolução espontânea e em sua integralidade do objeto furtado.
Disse ainda que o furto de uso não se enquadra no Código Penal. O ato é
considerado atípico e não passível de pena na esfera criminal.
O mundo estaria bem melhor
com mais pessoas que arriscam tudo para ler e ter acesso a um bom livro.