Amigos do Fingidor

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Clisteres e sangrias



João Bosco Botelho

As mudanças iniciadas, o desvendar dos corpos pela anatomia e a posição dos filósofos, mesmo com a condenação de Galileu, em 1633, instigam novas leituras da dor, acompanhadas de inevitáveis rupturas com o passado hipocrático-galênico-cristão. Destacam-se, no século 17, o médico inglês Harvey, em 1628, com a publicação do “Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in anima”, demonstrando os erros de Galeno sobre a circulação do sangue.
De modo genial, Marcelo Malpighi, em 1666, com o livro “De viscerum structura” retirou a doença dos humores de Hipócrates e recolocando-a na microestrutura, estabeleceu o segundo corte epistemológico da Medicina como especialidade social: o pensamento micrológico, que mudaria quase tudo nos selos seguintes até a atualidade.
Ocorreu no século 17 quando a doença foi retirada da macroestrutura corporal dos humores para a microestrutura dos tecidos por meio da micrologia – a dimensão celular –, descrita nos estudos de Marcelo Malpighi (1628-1694), marcando a nova fase dos saberes da Medicina-oficial.
O resultado foi a instituição da mentalidade microscópica, inaugurando o desvendar da multiplicidade das formas e das funções escondidas dos sentidos natos. Pouco a pouco, o estudo da célula dominou os meios acadêmicos. Hoje, é o sustentáculo do atual ensino da Medicina-oficial. Mesmo nos hospitais mais bem equipados, os tratamentos dependem do diagnóstico microscópico quantitativo e qualitativo das células corporais. Isto significa que a estrutura teórica dos saberes médicos, pelo menos no Terceiro Mundo, em pleno final do século 20, ainda está alicerçada sobre os princípios teóricos da patologia celular oriunda do século 17.
A micrologia enfraqueceu as teorias greco-romanas de Hipócrates e Galeno, entendidas como dogmas das universidades, no medievo europeu. Não muito depois, pouco a pouco, os processos teóricos que amparavam a micrologia, a busca da materialidade da doença na microscopia, substituíram as ideias da Escola de Cós.
 Os sistemas teóricos interligados e dependentes de Hipócrates e Galeno, capazes de explicar a saúde, a doença e a expressão do ser no social, mostraram-se tão adequados ao observável que dominaram as regras do diagnóstico, da terapêutica e as bases do ensino da Medicina oficial no Ocidente durante vinte séculos.
Ao lado dessa forte relação em torno das teorias hipocrático-galênicas que atravessou a Idade Média, alguns religiosos, como Miguel Servet, em 1530, estudante da Universidade de Toulouse (nessa universidade, eu tive a imensa honra de receber o título de Doutor Honoris Causa), imbuído da leitura dogmática bíblica, ao procurar explicação para o sopro de ar que deu vida ao primeiro homem, no livro “Christianismi restituio”, descreveu a pequena circulação coração-pulmão.
Contudo foram os estudos de Hipócrates e Galeno que suplantaram todas as outras correntes cientificas. Alcançaram o Brasil Colônia e os médicos da corte portuguesa. Durante vinte e três dias de febre e convulsão que antecederam a sua morte, a Princesa Paula Mariana, filha do primeiro Imperador do Brasil, foi submetida às chupadas de quarenta sanguessugas, onze vesicatórios, oito cataplasmas e sete clisteres, prescritos pela equipe de dez médicos que se revezaram à cabeceira real.