João Bosco Botelho
As mudanças iniciadas, o
desvendar dos corpos pela anatomia e a posição dos filósofos, mesmo com a
condenação de Galileu, em 1633, instigam novas leituras da dor, acompanhadas de
inevitáveis rupturas com o passado hipocrático-galênico-cristão. Destacam-se,
no século 17, o médico inglês Harvey, em 1628, com a publicação do “Exercitatio
anatomica de motu cordis et sanguinis in anima”, demonstrando os erros de
Galeno sobre a circulação do sangue.
De modo genial, Marcelo
Malpighi, em 1666, com o livro “De viscerum structura” retirou a doença dos
humores de Hipócrates e recolocando-a na microestrutura, estabeleceu o segundo
corte epistemológico da Medicina como especialidade social: o pensamento
micrológico, que mudaria quase tudo nos selos seguintes até a atualidade.
Ocorreu no século 17 quando
a doença foi retirada da macroestrutura corporal dos humores para a
microestrutura dos tecidos por meio da micrologia – a dimensão celular –,
descrita nos estudos de Marcelo Malpighi (1628-1694), marcando a nova fase dos
saberes da Medicina-oficial.
O resultado foi a
instituição da mentalidade microscópica, inaugurando o desvendar da
multiplicidade das formas e das funções escondidas dos sentidos natos. Pouco a
pouco, o estudo da célula dominou os meios acadêmicos. Hoje, é o sustentáculo
do atual ensino da Medicina-oficial. Mesmo nos hospitais mais bem equipados, os
tratamentos dependem do diagnóstico microscópico quantitativo e qualitativo das
células corporais. Isto significa que a estrutura teórica dos saberes médicos, pelo
menos no Terceiro Mundo, em pleno final do século 20, ainda está alicerçada
sobre os princípios teóricos da patologia celular oriunda do século 17.
A micrologia enfraqueceu as
teorias greco-romanas de Hipócrates e Galeno, entendidas como dogmas das universidades,
no medievo europeu. Não muito depois, pouco a pouco, os processos teóricos que
amparavam a micrologia, a busca da materialidade da doença na microscopia,
substituíram as ideias da Escola de Cós.
Os sistemas teóricos interligados e
dependentes de Hipócrates e Galeno, capazes de explicar a saúde, a doença e a
expressão do ser no social, mostraram-se tão adequados ao observável que
dominaram as regras do diagnóstico, da terapêutica e as bases do ensino da
Medicina oficial no Ocidente durante vinte séculos.
Ao lado dessa forte relação
em torno das teorias hipocrático-galênicas que atravessou a Idade Média, alguns
religiosos, como Miguel Servet, em 1530, estudante da Universidade de Toulouse
(nessa universidade, eu tive a imensa honra de receber o título de Doutor
Honoris Causa), imbuído da leitura dogmática bíblica, ao procurar explicação
para o sopro de ar que deu vida ao primeiro homem, no livro “Christianismi
restituio”, descreveu a pequena circulação coração-pulmão.
Contudo foram os estudos de
Hipócrates e Galeno que suplantaram todas as outras correntes cientificas.
Alcançaram o Brasil Colônia e os médicos da corte portuguesa. Durante vinte e
três dias de febre e convulsão que antecederam a sua morte, a Princesa Paula
Mariana, filha do primeiro Imperador do Brasil, foi submetida às chupadas de
quarenta sanguessugas, onze vesicatórios, oito cataplasmas e sete clisteres,
prescritos pela equipe de dez médicos que se revezaram à cabeceira real.