Amigos do Fingidor

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Curas divinas



João Bosco Botelho

As práticas médicas no Oriente Próximo, nas primeiras cidades, se mantiveram ancoradas na complexa relação entre a adivinhação, o mágico, as crenças e ideias religiosas e os saberes historicamente acumulados. Desse modo, naquelas organizações sociais, o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico eram executados sem método, casual, exercidos de modo predominante pelos especialistas no trato com a coisa sagrada. Sem receio de cometer exagero, nos estratos sociais privilegiados, próximos do poder político e econômico, os registros mesopotâmicos cuneiformes e egípcios hieroglíficos atestam as prescrições médicas entendidas como receitas de bolo repetidas, independentes das características individuais das doenças e de cada doente.
Como consequência, esses fatores representaram obstáculos intransponíveis para compreender aqueles conhecimentos fora dos restritos grupos dos eleitos. Esse pressuposto fica mais claro nas civilizações que se desenvolveram nas margens dos rios Eufrates, Tigre e Nilo. Apesar do notável senso empírico, a Medicina do segundo milênio permaneceu contida nas amarras da adivinhação, do mágico.
Os livros sagrados da tradição judaico-cristã estão abarrotados de passagens que enaltecem o poder de Deus sobre a vida e a morte, destacando a dádiva divina e o médico como alguém especial: Eclo 38, 1-2: Rende ao médico as honras que lhe são devidas, por causa de seus serviços, porque o Senhor o criou. Pois é do Altíssimo que vem a cura, como um presente que se recebe do rei. A ciência do médico o faz trazer a fronte erguida, ele é admirado pelos grandes.
Desde o século 4 a.C., a prática divinatória médica continuou forte no universo cultural grego e alcançou os territórios romanos, mantendo a metamorfose heroica associada à cura: deuses se destacavam no atributo do dom de curar as doenças e as feridas de guerra. 
A Medicina e os médicos atados às ideias e crenças religiosas transpuseram as fronteiras greco-romanas, cristianizados no Ocidente, marcados no ministério de Jesus Cristo, onde as curas milagrosas se destacam em muitas passagens bíblicas, estabelecendo novos conceitos na prática médica: a caridade cristã como instrumento de cura.