João Bosco Botelho
A compreensão cristã da relação entre doença e pecado
permaneceu inalterada, na Idade Média europeia, fazendo com que a atividade
médica perdesse as conquistas alcançadas no período greco-romano, interferindo
diretamente no novo rumo da Medicina atado ao milagre.
Como consequência do gradual fechamento das escolas de
Medicina, a partir do século 6, o número de médicos diminuiu significativamente
e grande parte dos atendimentos médicos aconteceram no interior dos mosteiros e
abadias, praticados pelos padres de diferentes ordens religiosas.
Entre os mosteiros que se destacaram no exercício da
atividade médica, o de Monte Cassino, na Itália, construído sobre antigo templo
de Apolo. Esse acontecimento, a substituição dos templos dedicados aos deuses
do panteão greco-romano pelas igrejas, foi sendo realizado de modo competente
pelas autoridades cristãs. As edificações eram conservadas e, na maior parte
das vezes, ampliadas, e as antigas imagens dos deuses do politeísmo eram
substituídas pelos do cristianismo. Os santos protetores cristãos tomaram os
lugares dos deuses curadores romanos.
Ao mesmo tempo, multiplicava-se também o uso de relíquias
para a proteção das doenças. Exemplo marcante dessa época pode ser sentido nas
palavras de Santo Agostinho: “O perfume de azeviche afugenta os demônios e seu
uso desata e desfaz o quebranto, ligaduras e encantamentos e todos os fantasmas
tristes e melancolia.”
Do mesmo modo, também é clara na descrição da peste negra
feita por Boccacio: “No ano de Nossa Senhora de 1348 ocorreu em Florença, a
mais bela cidade de toda a Itália, uma peste terrível, que seja, devido à
influência dos planetas, ou seja, como castigo de Deus aos nossos pecados...”.
Vários fatores intervieram para estruturar a concepção da
caridade cristã. Houve, certamente, influência desse entendimento na
transformação do serviço médico como trabalho profissional remunerado,
existente desde as primeiras cidades, no Egito e na Mesopotâmia, em sacerdócio
sem remuneração.
Existem muitas
manifestações artísticas, em pinturas e esculturas, nos principais museus do
mundo, entre os séculos 7 e 14, saudando e estimulando a prática médica como
atividade religiosa sem pagamento.
Em torno do século 10, os padres também exerciam práticas de
curas fora dos muros dos mosteiros. Nos anos seguintes, ocorreram graves
atritos com as populações por causa das complicações dos tratamentos, inclusive
mortes de doentes. Por essas razões, os religiosos foram proibidos de exercer a
atividade médica fora dos muros das abadias e mosteiros, por determinação dos
Concílios de Remis (1131) e de Roma (1139).
É possível que os reclamos populares tenham interferido no
aparecimento das universidades. A Escola Médica de Salerno, no Sul da Itália,
fundada ao lado de um convento beneditino, foi uma das primeiras em receber a
participação de médicos laicos. A Escola de Salerno é responsável perante a
História pela famosa frase: “Primo, non nuocere” ou “Em primeiro, não faça
mal”, restaurando um dos fundamentos mais importantes da Medicina hipocrática.
Pouco tempo depois,
surgiu a Escola de Montpelier, na França, com as mesmas características, isto
é, a fundamentação do ensino médico era baseada nas obras de Hipócrates e
Galeno.
O grande expoente da Escola de Montpelier foi Guy de Chauliac
(1300-1370), autor do livro Grande Cirurgia difundido em toda a Europa nos
séculos seguintes.
Neste período, começa a ser esboçado novo avanço nas ideias
por meio dos escritos de Thomás de Aquino (1225-1274). Professor em Montpelier,
reformulou o pensamento aristotélico que dominava a teologia medieval e retoma
a relação entre a fé e a razão iniciada por Abelardo (1079-1142). Nas
considerações filosóficas em torno do “será”, Thomás de Aquino afirma que a
perfeição máxima não é a ideia de ser, mas o ato de ser e rejeita a interferência
de Deus na autossuficiência do conhecimento humano. Com esta nova visão
teológica, o caminho para novos conhecimentos e indagações estava aberto, mesmo
que de forma ainda restrita, culminando, com a criação e o fortalecimento das
universidades de Bolonha e de Paris.
Os estudos da anatomia humana foram retomados pelas mãos de
Mondino de Luzzi(1270-1326), professor da Universidade de Bolonha, que realizou
a sua primeira dissecção humana em 1315. Como fruto das suas observações
anatômicas desacredita publicamente muitas afirmações de Galeno, que se
mantiveram intocáveis durante dez séculos. Os estudos de anatomia de Mondino
permaneceram como verdades absolutas até que Vesálio, em 1543, publicou o seu
maravilhoso tratado de anatomia humana “Human Corporis fabrica”.
Nos séculos seguintes até a atualidade, as universidades
provocam rupturas e saberes.