Amigos do Fingidor

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Satanismo medieval e as práticas médicas populares 1/2


João Bosco Botelho


É possível identificar mudanças significativas nas práticas médicas, incorporadas junto ao aparecimento das primeiras universidades, a partir da segunda metade do século 14. Simultaneamente, se iniciou luta feroz dos médicos, formados nas universidades, para conquistar a credibilidade junto à população desassistida e superar a presença dos curadores de todos os matizes, inclusive a dos cirurgiões-barbeiros, nas abadias e conventos.
Nesse sentido, uma poderosa rede de calúnias, ligada às interpretações oportunistas da Bíblia, fomentou o descrédito dos benzedores, parteiras e cirurgiões-barbeiros, que passaram a ser identificados como diabos e bruxos e adivinhos malignos.
A parteira, tão antiga quanto útil durante muitos milhares de anos, era, com certeza, a mais importante representante desses curadores populares, simbolizando, por essa razão, o papel de inimigo mais importante da universidade cristã.
É possível que tenha ocorrido relação política entre a perseguição implacável aos agentes da Medicina-empírica, especialmente as parteiras e benzedeiras, e a bula Summis Desiderantes Affectibus contra o satanismo, editada pelo Papa Inocêncio VIII em 1484.
Em consequência, muitas parteiras e outros agentes da medicina empírica foram levados a julgamento nos tribunais da Inquisição e merecerem um capítulo inteiro – “De como parteiras-bruxas cometem os mais horrendos crimes, matando ou dedicando crianças ao diabo da maneira mais amaldiçoada” – , no terrível “Malleus Maleficarum” (“O Martelo da Bruxaria”), escrito pelos priores do Convento de Colônia, (Alemanha), Kramer e Sprenger.
Esse terrível livro, editado pela primeira vez, em 1486, conduziu um dos mais tenebrosos períodos de uma ética, ligada ao poder eclesiástico, com o objetivo de assassinar milhares de resistentes à inflexível autoridade eclesiástica.
Em relação às parteiras, identificadas como bruxas no livro “O Martelo da Bruxaria”, o raciocínio dos priores Kramer e Sprenger era muito simples e eficiente porque colocava a questão do pecado original no centro do conflito com o diabo, como o indutor do mal: “Ora, qual o motivo desse crime infame? Presume-se que as bruxas sejam compelidas a cometê-lo a comando do espírito do mal, às vezes contra sua vontade. Pois o demônio sabe que, por causa do sofrimento da perda – poena damni –, ou do pecado original, essas crianças são privadas de entrar no reino dos céus”.