João Bosco Botelho
É possível identificar mudanças significativas nas práticas
médicas, incorporadas junto ao aparecimento das primeiras universidades, a
partir da segunda metade do século 14. Simultaneamente, se iniciou luta feroz
dos médicos, formados nas universidades, para conquistar a credibilidade junto
à população desassistida e superar a presença dos curadores de todos os
matizes, inclusive a dos cirurgiões-barbeiros, nas abadias e conventos.
Nesse sentido, uma poderosa rede de calúnias, ligada às
interpretações oportunistas da Bíblia, fomentou o descrédito dos benzedores,
parteiras e cirurgiões-barbeiros, que passaram a ser identificados como diabos
e bruxos e adivinhos malignos.
A parteira, tão antiga quanto útil durante muitos milhares de
anos, era, com certeza, a mais importante representante desses curadores
populares, simbolizando, por essa razão, o papel de inimigo mais importante da
universidade cristã.
É possível que tenha ocorrido relação política entre a
perseguição implacável aos agentes da Medicina-empírica, especialmente as
parteiras e benzedeiras, e a bula Summis
Desiderantes Affectibus contra o satanismo, editada pelo Papa Inocêncio
VIII em 1484.
Em consequência, muitas parteiras e outros agentes da medicina
empírica foram levados a julgamento nos tribunais da Inquisição e merecerem um
capítulo inteiro – “De como parteiras-bruxas cometem os mais horrendos crimes,
matando ou dedicando crianças ao diabo da maneira mais amaldiçoada” – , no
terrível “Malleus Maleficarum” (“O Martelo da Bruxaria”), escrito pelos priores
do Convento de Colônia, (Alemanha), Kramer e Sprenger.
Esse terrível livro, editado pela primeira vez, em 1486,
conduziu um dos mais tenebrosos períodos de uma ética, ligada ao poder
eclesiástico, com o objetivo de assassinar milhares de resistentes à inflexível
autoridade eclesiástica.
Em relação às parteiras, identificadas como bruxas no livro
“O Martelo da Bruxaria”, o raciocínio dos priores Kramer e Sprenger era muito
simples e eficiente porque colocava a questão do pecado original no centro do
conflito com o diabo, como o indutor do mal: “Ora, qual o motivo desse crime
infame? Presume-se que as bruxas sejam compelidas a cometê-lo a comando do
espírito do mal, às vezes contra sua vontade. Pois o demônio sabe que, por
causa do sofrimento da perda – poena damni –, ou do pecado original, essas
crianças são privadas de entrar no reino dos céus”.