Zemaria Pinto
Em memória de Arthur Engrácio,
a quem um dia contei esta história.
Lacônico, ele apenas disse: agora, escreva.
Naquela época, Andorinhas ainda não era um ponto no mapa, com
suas três ruas de terra batida, à margem direita do rio Negro. Não havia
escola, muito menos serviço de saúde. As igrejas – a católica e a protestante,
em absurda harmonia – supriam esses serviços, alfabetizando as crianças, orientando
e prestando atendimento básico, sempre levando em conta os saberes ancestrais.
No mais, era escolher: subindo à esquerda, São Gabriel; descendo à direita,
Santa Isabel. Regulando os onze, doze anos, eu não tinha a mínima noção de
futuro. Andorinhas, eu perceberia depois, representava a continuidade infinita
e imutável, algo muito mais profundo e cruel que a sobrevivência – um conceito
que a sociologia esvazia, com suas utopias tolas. Eu só sabia que não queria
continuar ali, naquele imenso nada vazio.
A população da vila era formada por gente que sempre morou lá
ou que, tendo saído, retornou. Por isso, as raras exceções eram muito visadas.
Dona Jeane, da Guiana Francesa, proprietária de uma taberna na rua da frente, só
falava o crioulo, acrescentando umas poucas palavras em português, enriquecendo
o mix de línguas, mas impossibilitando qualquer entendimento com os fregueses. Num
lugar de tapuios e caboclos, sua negritude era sua soberba. Diziam que era
comunista e fora parar em Andorinhas fugindo da polícia de seu país. Durante
muito tempo, acreditei que os comunistas eram todos negros retintos e falavam
atrapalhado. Beto Carapanã era um bicho-grilo que um belo dia apareceu em
Andorinhas, com um violão a tiracolo, sem que ninguém soubesse como, já que só
se chegava de barco e de barco ninguém o vira chegando. Sério, ele dizia que
chegou voando. Magérrimo, ganhou logo o sobrenome. Carapanã tinha um sítio,
onde, vegetariano, plantava o autossustento e até a erva do cigarrinho artesanal,
sucesso entre os moleques mais velhos. O excedente, tanto de legumes e grãos
como de erva, era usado para escambo, com o que ele obtinha o que não produzia,
como a seda usada no cigarrinho. E tinha o Carioca, que um dia desembarcou lá e
foi ficando, sem que ninguém soubesse o que fazia e muito menos do que vivia. Gabava-se
de ter sido jogador de futebol e ser amigo de todos os grandes craques da época,
falando em nomes que a gente só ouvia em ondas médias ou lia em velhos jornais
que vinham da capital. Mas ninguém o levava a sério. Quando lhe perguntavam que
diabos viera fazer naquele nosso fim de mundo, xingava, fechava a cara e dava
as costas. A pergunta valia para os três: por que, tendo o mundo inteiro à
disposição, alguém optaria por morar em Andorinhas?
Os moleques da vila viviam em permanente interação,
frequentando a mesma igreja, as duas, e vivendo a mesma vadiagem: nadando ou
caçando passarinho pela manhã, jogando pelada ou pescando à tarde, conversando
mole à noite. Mas não era incomum inverter os turnos das atividades, só para
quebrar a rotina. Uma vez por outra, ajudávamos na subsistência da família,
plantando, caçando, pescando. Ouvir rádio era uma opção noturna, mas em casa,
com a família, o que tirava toda a graça. Eu fazia parte de um pequeno grupo,
que estava sempre junto, sob chuva ou sob sol, aprontando sempre. Nada
diferente de qualquer grupo de crianças pobres dessas lonjuras e amplidões. Mas
a história de um daqueles meninos subiu e desceu o rio e foi notícia até na
capital.
Antônio Mocinha ganhou esse apelido por pura inveja do resto
da molecada. Mocinha era bonito, tinha olhos gateados, cabelos loiro-acinzentados
e uma raríssima pele branca que ficava cor-de-rosa ao sol. Diziam que era a
cópia da mãe, levada para Manaus ainda criança. As meninas se esfregavam nele,
literalmente, enquanto a gente lambia os beiços. Mocinha nunca se importou com
o apelido, pelo contrário, orgulhava-se dele, porque tinha consciência da razão.
Seu avô Raimundo Onça é que não gostava. Dizia que era coisa de fresco. Mas não
havia frescos em Andorinhas, e Mocinha não haveria de ser o primeiro.
Raimundo Onça era um parágrafo à parte. Sempre de óculos
escuros, para esconder os “olhos amaldiçoados, de felino”, como era corrente
entre o povo, ele ganhou esse nome porque era um exímio caçador de onças, do
tipo que pegava vivos os filhotes, para vendê-los aos traficantes, ou atirava
no olho do animal adulto, para produzir um só orifício, no posterior do crânio
atravessado pela bala fatal, onde é mais fácil de cerzir, entregando a pele
perfeita. Sobre a maldição, diziam que fora um velho pajé-onça, que ele matara:
o pajé o amaldiçoou a virar onça, para conhecer o sofrimento dos animais. Mas
apenas os olhos se transformaram.
Havia dois campos de futebol em Andorinhas. O da rua de trás,
maior, era dominado pelos moleques mais velhos, e no fim de semana recebia
também os adultos. O da rua do meio, um pequeno terreno abandonado, era
disputado pelos moleques de menos idade. Para evitar confusões, formavam-se
times de tamanhos mistos, valendo o que hoje é conhecido como gol de ouro:
tomou um gol, vai pro rabo da fila, esperar para jogar de novo. A gente chamava
de gol da morte. Mocinha era o goleiro do nosso time mais constante. Carioca,
que passava o dia zanzando pela vila, tomando pinga nas tabernas e tentando
superar a repulsa que emanava de si, costumava parar no nosso campinho, falando
alto, gesticulando muito, fazendo piadas sem graça e dando picica nas jogadas.
Ninguém dava atenção ao intruso, até que uma ocasião ele se aproximou da trave
guardada por Antônio Mocinha e começaram a conversar. Naquele final de tarde,
Mocinha ficou com Carioca, para “treinar umas técnicas de goleiro”. Alguns
meninos, por mera curiosidade ou mesmo falta do que fazer, ficaram também. E
esse “treino” se tornou rotina, sempre entrando pela noite, até que deixou de
ser objeto de curiosidade. Nas rodadas de cachaça, Carioca dizia que Mocinha
tinha talento e poderia se dar bem na capital, que, desde o ano anterior,
profissionalizara a prática do futebol.
Uma noite, Raimundo Onça voltou cedo para casa e não
encontrou o neto. Percorreu as três ruas, por trás dos inseparáveis óculos
escuros, indagando por Mocinha e, nas tabernas, tomando uma lapada de pinga
“pra passar a raiva”. Várias pessoas tinham visto o moleque na companhia de
Carioca. Onça rumou para a rua de trás, uma das últimas casas, antes da mata
fechada. Porta arrombada, nada se viu de especial, a não ser o desarranjo comum
de uma casa de solteiro pobre. Boa parte
da vila seguira Raimundo Onça. Na picada que dava acesso à floresta, ele parou
e deixou bem claro que não queria ninguém com ele. “É um problema meu. Eu vou
resolver.” E se foi mata adentro.
Montamos sentinela, esperando o retorno do velho caçador. Cerca
de uma hora depois, ouvimos o rugido tenebroso de uma onça. Não parecia estar
muito longe. Uma coisa era certa: ela fora ferida de morte. Aquele troar
assustador não tinha correspondência em nossas memórias. Mas ela continuava a
rugir, cada vez mais forte. Ódio. Era ódio que ela sentia. A dor do ódio. E se
movimentava com agilidade por dentro do breu da mata sem lua. Já era madrugada
quando percebemos uma mudança no padrão dos rugidos, como se ela acuasse o
inimigo, o atacasse e o ferisse muitas vezes – até o silêncio total, de um punhado
de segundos, sucedido pelo esturro final, longo e potente, como um urro de
vitória. Alguns de nós, eu incluído, vibramos como se fosse um gol. O silêncio
que se seguiu exigiu uma decisão. Os adultos concordaram em voltar às seis
horas, com o sol, formando equipes para entrar na floresta e tentar entender o
que acontecera. Mas ninguém dormiu.
O corpo nu de Antônio Mocinha, com o rosto na terra escura, imerso
numa poça de sangue, tinha um só corte, largo e profundo, no pescoço,
acompanhando toda a extensão frontal. Cem a duzentos metros depois, encontramos
uma navalha suja de sangue, e, logo depois, espalhados num
círculo de uns 20 metros de diâmetro, os óculos quebrados, as roupas esfarrapadas,
restos das alpercatas e as armas intactas de Raimundo Onça: duas facas e uma
espingarda, seus instrumentos de caça. Mais 50 ou 60 metros à frente, os
despojos do que fora Carioca: o corpo rasgado ao meio, expondo as vísceras
dilaceradas; os olhos, arrancados; o órgão sexual, esmagado. O animal que
fizera aquilo tinha uma força descomunal e estava movido por um ódio
indescritível.
Raimundo Onça não apareceu jamais, alimentando a lenda de que
a maldição do pajé-onça finalmente se cumprira.
Antônio Mocinha é o nome de uma imponente praça, a principal
de Andorinhas, em frente à Matriz, ocupando todo um quarteirão, de frente para
o rio Negro. No centro da praça, um pequeno monumento traz seu nome completo e
datas de nascimento e morte, entre as quais transcorreram não mais que doze
anos e alguns meses. E uma rara foto, colorizada, ampliada cinco ou seis vezes,
deixando os grânulos visíveis, testemunhando o quanto Antônio Mocinha fora
belo.