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segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 14/14

Zemaria Pinto

 

Verdade e literatura

O romance de Ferreira de Castro sempre foi lido com complacência, apontando-se-lhe, com merecida festa, os poucos acertos, e contornando-se, com indispensáveis contorcionismos retóricos, os muitos erros. O maior acerto está onde encontramos as maiores falhas: no caráter documental da narrativa. Apontamos, e não vamos repeti-las, as incoerências entre a trama encabeçada por Alberto e os números da vida real, entre 1919 e 1921, período em que Alberto teria ficado no Paraíso. Mas o que sobra de acerto é a denúncia do escravismo e das condições subumanas a que eram submetidos os seringueiros, que já estava, com maior contundência, em um livro publicado seis anos antes: La vorágine, do colombiano José Eustasio Rivera (1888-1928). A mesma Amazônia, os mesmos seringueiros, os mesmos vis exploradores. Mas a comparação termina por aqui, porque não encontramos nenhuma evidência de que o autor português lera o colombiano.

Um outro acerto de Ferreira de Castro é quanto à linguagem. Ainda que atrelado ao Naturalismo, ele já pratica a linguagem que seria corrente no Neorrealismo: desprovida de ornamentos, simples, objetiva, descarnada – tal como a queriam os modernistas.

Quanto às falhas, apontadas minuciosamente ao longo deste trabalho, podem ser identificadas em dois grupos. No que diz respeito à organicidade da trama, demostramos a inverossimilhança do protagonista e o descaso com que o autor trata os números que deveriam embasar o realismo de sua narrativa, transformando as cores fortes de um possível documentário ficcional em uma ficção inverossímil, de cores desbotadas. O segundo grupo é o da estrutura narrativa, com o abuso de clichês e exploração do exotismo, além dos incontáveis disparates anotados, aos quais se ajunta o descaso com as convenções mais elementares da narrativa ficcional.

Noventa anos passados, A selva ainda é a principal referência na prosa de ficção que trata do ciclo econômico da borracha, pois pouco se acrescentou sobre esse tema, no gênero: Beiradão (1958), de Álvaro Maia, e O amante das Amazonas (1992), de Rogel Samuel. Não temo, pelas suas qualidades intrínsecas, acrescentar a essa parca lista um poema de esquecido autor amazonense, anterior ao romance português: A Uiara (1922), de Octavio Sarmento (1879-1926).

A Uiara é um poema narrativo, com 978 versos decassílabos e esquema rímico irregular, dividido em sete capítulos, que mostram a jornada do cearense Militão, uma alegoria dos milhares de nordestinos que, como dissemos, eram recrutados para suprir a mão de obra nativa, insuficiente para atender à demanda dos seringais.

Tecnicamente, um romance, o narrador – limitado, pois conta “de ouvir contar” – acompanha Militão fugindo da implacável seca nordestina, com mulher e filha, que morrem em meio da viagem. Na sequência, carregando no cromatismo, descreve a viagem rumo ao seringal; em seguida, discorre sobre o lendário amazônico, para, enfim, deter-se no dia a dia do solitário Militão. Embora sem definir datas, presume-se que os acontecimentos se passem antes da queda nos preços e na demanda da borracha. Mas não é a questão social-financeira que está em jogo. Octavio Sarmento constrói sua personagem lentamente, forjando o estofo psicológico de Militão e concluindo, freudianamente, que a Uiara é a representação do seu desejo sexual reprimido.

Embora, por vezes, exagerando nas cores, A Uiara é um poema sóbrio, antecipador de toda a literatura sobre o período. O seu esquecimento se deu por jamais ter merecido uma edição em livro, posto que a publicação, em 7 de dezembro de 1922, quando se comemorava o centenário da Independência, deu-se em um jornal: o Diário Official. No entender de Mário Ypiranga Monteiro, A Uiara não recebeu “o bafejo da crítica honesta do tempo” (p. 159). Para uma literatura dividida entre a Grécia clássica e a França do XIX, A Uiara, tratando de nordestinos miseráveis e paisagens selvagens, era um incômodo. Não resisto ao paralelo com Juca Mulato, o poema de Menotti Del Picchia que, em 1917, retoma a temática regionalista, esquecida desde os românticos, e antecipa o Modernismo, trazendo a vida do homem comum para a poesia, escapando do marmóreo Parnasianismo e do penumbrento Simbolismo. Embora um simbolista tardio na sua obra lírica, em A Uiara, Octavio Sarmento, que, muito provavelmente, conhecia o poema de Del Picchia, despe-se de qualquer pudor e, romântico na forma, planta uma semente de modernidade na literatura amazonense, 13 anos antes de Violeta Branca, 32 anos antes do Clube da Madrugada. Não, Pereira da Silva não conta.

 

Aqui, voltamos ao ponto inicial de nossa jornada, encerrando-a. Faláramos de obras que envelhecem e obras que são ressignificadas. No primeiro caso, por tudo que tratamos, temos A selva. No segundo, 13 anos depois de sua publicação em livro, numa iniciativa da Academia Amazonense de letras, sob a presidência do escritor Elson Farias, temos A Uiara – ainda em fase de descoberta e afirmação. Mas não se trata de trocar um pelo outro, tão escassa é a literatura do período; antes, é preciso compreender o fenômeno literário como algo que não se deixa aprisionar numa cápsula de tempo, como não se permite dogmatizar o que é apenas humano. A única verdade da literatura é que ela não tem uma verdade. Não uma só, pelo menos.

 

Referências

 

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