O busto de Voltaire ou O neoliberalismo é fascista
Zemaria Pinto
o original talvez fosse de mármore
ou bronze
ou ferro
sobre a mesa, o gesso branco
barato
roto
desbotado
moldado aos milhares
vagabundo e solitário
a falsa cabeleira, a calva oculta
os olhos baços, o nariz adunco
o lábio em linha, a boca de
improváveis dentes
e o queixo penso ao peito, peso da corcova
representação da velhice
símbolo de uma era morta
metáfora da decadência
alegoria da ruína
mas
o busto pensa e, mais que isso, luta
um mundo sem ameias, nem peias
verdades
a dúvida como dogma
as vísceras como dívida
a liberdade, uma dádiva
a igualdade, um anelo
contra a opressão um libelo
meus olhos pousam na podre estrutura
buscando o cerne além do simulacro
e um turbilhão de ideias me avassala:
nunca um pequeno busto foi tão belo!
Amazonas,
vazante de 2019
Voltaire (1694-1778). Busto de autor desconhecido. |