Zemaria
Pinto
Desde
que os primeiros europeus invadiram a selva amazônica, em 1541, vindos do Peru,
a literatura feita na Amazônia (e sobre ela) foi, durante mais de 300 anos,
tarefa de estrangeiros – é o que chamamos de “literatura dos viajantes”. Mas,
estes continuaram produzindo – continuam, aliás, o que é muito bom. Neste breve
artigo, quero chamar a atenção para obras de três autores notáveis, que elegeram
a Amazônia como cenário, sem nunca passarem por aqui, servindo-se unicamente do
imaginário, retroalimentando-o e contribuindo para a expansão do mesmo.
Para o
escritor viajante, a paisagem representa o primeiro choque com a realidade
amazônica, e, a partir desse choque, a paisagem assume o primeiro plano no
imaginário, se sobrepondo a todos os outros elementos. É desse uso exacerbado
da paisagem que nasce o clichê “edenismo x infernismo”: para alguns autores, é
o “paraíso perdido”; para outros, apenas um “inferno verde”.
A
paisagem é a selva. E a selva é um enigma. Como definir a selva para quem nunca
a viu? Podemos começar dando uma ideia de suas dimensões, usando a mesma
expressão que serviria para dar as dimensões do mar, do deserto ou do espaço:
imensidão. Mas isso seria uma incoerência, porque a selva, plantada a céu
aberto, é fechada. E se é fechada, é limitada. Por outro lado, é muito fácil de
entrar, mas é complicado sair de sua estrutura labiríntica. Sob o sol, seu
interior é escuro, sombrio. Mas, há de ter os sentidos aguçados para vê-la,
tocá-la, sentir o seu cheiro, o seu gosto – e, sobretudo, ouvi-la. Porque este
é o sentido mais exigido: o silêncio da floresta é algo entre uma
desconcertante reunião de instrumentos desafinados tocados ao mesmo tempo e a
suavidade quase silenciosa de uma peça de câmara.
A selva
se associa à água – dos rios, dos lagos, das corredeiras, das cachoeiras, da
pororoca, das enchentes, das vazantes, das chuvas intermináveis e das
tempestades devastadoras. Para o viajante, a água é caminho, a selva é
mistério. Nada mais natural, portanto, que o escritor estranho à região, e
distante dela, eleja a paisagem, item essencial do imaginário, como elemento de
maior destaque.
Não
fugiram à regra os três escritores estrangeiros, que, conhecendo a Amazônia só
a partir da literatura, aventuraram-se a escrever sobre a região, sem jamais
colocarem os pés (ou os olhos) na selva. Sua contribuição ao imaginário local é
próxima a zero, quando pensada sob a perspectiva da região. Mas, para quem os
lê a distância, sempre haverá algo a somar, pois o imaginário não exige
verossimilhança.
Uma
tragédia no Amazonas.
Raul Pompeia (1863-1895) é um dos mais notáveis romancistas da língua
portuguesa no século 19, assim considerado unicamente por O ateneu
(1888). Aos dezessete anos, publicou seu primeiro romance, Uma tragédia no
Amazonas. Não era pouca coisa: Capistrano de Abreu, o mais importante
crítico literário da época, escreveu, um ano depois do lançamento, que Pompeia
e Aluísio Azevedo – que lançara O mulato (1881), eram “os dois maiores
romancistas da nova geração”.[1]
O resto é história: Azevedo ficou com a glória de fundar o Naturalismo no
Brasil, caindo a obra de Pompeia no esquecimento. A partir de meados dos anos
1960, quando o texto caiu em domínio público, apareceram algumas edições, como
mera curiosidade em torno do autor de O ateneu. Em 2020, a Editora
Reggo, de Manaus, compreendendo o papel histórico do livro, preparou uma edição
primorosa, conservando, entre parêntesis, uma humilde confissão, que fizera
parte do título original: “ensaio literário”. Ensaio, claro, no sentido de
teste, experimento – pois essa era intenção do adolescente Pompeia.
Uma
tragédia no Amazonas[2]
conta cerca de dois anos da vida do subdelegado de polícia Eustáquio,
pernambucano, e sua esposa Branca, amazonense, em um sítio próximo à localidade
de São João do Príncipe, no rio Iapurá. Outras personagens agregam-se à trama,
como o padre Jorge, a órfã Rosalina, os franceses Henrique e Octavio, além de
um filho do casal, recém-nascido, ainda não batizado. Pela sua função policial,
Eustáquio atrai inimigos – representados por saqueadores espanhóis e escravos
fugidos –, que preparam uma vingança contra ele. Anísio Jobim, tratando dos
“descimentos” no século 18, refere-se a uma localidade chamada São João do
Príncipe, às margens do rio Japurá[3]
– uma evidência de que o autor servia-se de mapas reais para estruturar seu
enredo, construído meticulosamente: Pompeia vai aos poucos fornecendo, em flashbacks,
informações essenciais à trama, até que, no capítulo final – “A tragédia”
anunciada – todo o arcabouço narrativo encontra-se montado, permitindo os
encaixes das minúcias.
Usando
as técnicas legitimadas pelo folhetim, Pompeia mantém a tensão narrativa, de
modo a prender o interesse e a atenção do leitor, eventualmente até conversando
com este – expediente metalinguístico consagrado por Machado de Assis. As
descrições da natureza tangenciam a poesia, lembrando as póstumas Canções
sem metro (1900), poemas em prosa, de clara extração simbolista. Observe-se
este trecho, do capítulo “Quem persegue. Quem defende”, em que o impossível
silêncio é valorizado acima de qualquer outra percepção:
Por sobre os
píncaros arredondados das montanhas resvalavam massas de nevoeiro até se
deixarem cair lento a lento pelas quebradas. Por toda a parte reinava o
silêncio. (p. 119)
Do
capítulo “A volta”, um trecho em que o realismo da narrativa se deixa envolver
em um halo de irrealidade:
A lua, vermelha
como a lanterna sangrenta de algum gênio das trevas, avançava tristonha pelos
céus além. A atmosfera, tristemente nublada, mal coava uma frouxa claridade que
dava a tudo uma feição fantástica. (p. 88)
Era o
que o autor chamava de “poesia selvática”.
A par
da violência que permeia a narrativa, o naturalista Raul Pompeia defende teses
hoje consideradas racistas – como o de que o comportamento humano é uma herança
genética, racial. Como atenuante, diga-se que ele herda mais de 300 anos de
escravidão, promovida por uma elite branca e cristã, com laivos civilizatórios europeus.
(Conclui na próxima sexta-feira, 11/02)
[1]
Apud MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, vol.
IV (1877-1896). 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1979. p. 85-86.
[2]
POMPEIA, Raul. Uma tragédia no Amazonas (ensaio literário). Manaus:
Reggo, 2020.
[3]
JOBIM, Anísio. O Amazonas: sua história (ensaio antropogeográfico
e político). Col. Brasiliana, vol. 292. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1957. p. 52.