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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O imaginário amazônico em três romances improváveis – 1/2

Zemaria Pinto

 

Desde que os primeiros europeus invadiram a selva amazônica, em 1541, vindos do Peru, a literatura feita na Amazônia (e sobre ela) foi, durante mais de 300 anos, tarefa de estrangeiros – é o que chamamos de “literatura dos viajantes”. Mas, estes continuaram produzindo – continuam, aliás, o que é muito bom. Neste breve artigo, quero chamar a atenção para obras de três autores notáveis, que elegeram a Amazônia como cenário, sem nunca passarem por aqui, servindo-se unicamente do imaginário, retroalimentando-o e contribuindo para a expansão do mesmo.

Para o escritor viajante, a paisagem representa o primeiro choque com a realidade amazônica, e, a partir desse choque, a paisagem assume o primeiro plano no imaginário, se sobrepondo a todos os outros elementos. É desse uso exacerbado da paisagem que nasce o clichê “edenismo x infernismo”: para alguns autores, é o “paraíso perdido”; para outros, apenas um “inferno verde”.

A paisagem é a selva. E a selva é um enigma. Como definir a selva para quem nunca a viu? Podemos começar dando uma ideia de suas dimensões, usando a mesma expressão que serviria para dar as dimensões do mar, do deserto ou do espaço: imensidão. Mas isso seria uma incoerência, porque a selva, plantada a céu aberto, é fechada. E se é fechada, é limitada. Por outro lado, é muito fácil de entrar, mas é complicado sair de sua estrutura labiríntica. Sob o sol, seu interior é escuro, sombrio. Mas, há de ter os sentidos aguçados para vê-la, tocá-la, sentir o seu cheiro, o seu gosto – e, sobretudo, ouvi-la. Porque este é o sentido mais exigido: o silêncio da floresta é algo entre uma desconcertante reunião de instrumentos desafinados tocados ao mesmo tempo e a suavidade quase silenciosa de uma peça de câmara.   

A selva se associa à água – dos rios, dos lagos, das corredeiras, das cachoeiras, da pororoca, das enchentes, das vazantes, das chuvas intermináveis e das tempestades devastadoras. Para o viajante, a água é caminho, a selva é mistério. Nada mais natural, portanto, que o escritor estranho à região, e distante dela, eleja a paisagem, item essencial do imaginário, como elemento de maior destaque.

Não fugiram à regra os três escritores estrangeiros, que, conhecendo a Amazônia só a partir da literatura, aventuraram-se a escrever sobre a região, sem jamais colocarem os pés (ou os olhos) na selva. Sua contribuição ao imaginário local é próxima a zero, quando pensada sob a perspectiva da região. Mas, para quem os lê a distância, sempre haverá algo a somar, pois o imaginário não exige verossimilhança.

 

Uma tragédia no Amazonas. Raul Pompeia (1863-1895) é um dos mais notáveis romancistas da língua portuguesa no século 19, assim considerado unicamente por O ateneu (1888). Aos dezessete anos, publicou seu primeiro romance, Uma tragédia no Amazonas. Não era pouca coisa: Capistrano de Abreu, o mais importante crítico literário da época, escreveu, um ano depois do lançamento, que Pompeia e Aluísio Azevedo – que lançara O mulato (1881), eram “os dois maiores romancistas da nova geração”.[1] O resto é história: Azevedo ficou com a glória de fundar o Naturalismo no Brasil, caindo a obra de Pompeia no esquecimento. A partir de meados dos anos 1960, quando o texto caiu em domínio público, apareceram algumas edições, como mera curiosidade em torno do autor de O ateneu. Em 2020, a Editora Reggo, de Manaus, compreendendo o papel histórico do livro, preparou uma edição primorosa, conservando, entre parêntesis, uma humilde confissão, que fizera parte do título original: “ensaio literário”. Ensaio, claro, no sentido de teste, experimento – pois essa era intenção do adolescente Pompeia.



    Uma tragédia no Amazonas[2] conta cerca de dois anos da vida do subdelegado de polícia Eustáquio, pernambucano, e sua esposa Branca, amazonense, em um sítio próximo à localidade de São João do Príncipe, no rio Iapurá. Outras personagens agregam-se à trama, como o padre Jorge, a órfã Rosalina, os franceses Henrique e Octavio, além de um filho do casal, recém-nascido, ainda não batizado. Pela sua função policial, Eustáquio atrai inimigos – representados por saqueadores espanhóis e escravos fugidos –, que preparam uma vingança contra ele. Anísio Jobim, tratando dos “descimentos” no século 18, refere-se a uma localidade chamada São João do Príncipe, às margens do rio Japurá[3] – uma evidência de que o autor servia-se de mapas reais para estruturar seu enredo, construído meticulosamente: Pompeia vai aos poucos fornecendo, em flashbacks, informações essenciais à trama, até que, no capítulo final – “A tragédia” anunciada – todo o arcabouço narrativo encontra-se montado, permitindo os encaixes das minúcias.

Usando as técnicas legitimadas pelo folhetim, Pompeia mantém a tensão narrativa, de modo a prender o interesse e a atenção do leitor, eventualmente até conversando com este – expediente metalinguístico consagrado por Machado de Assis. As descrições da natureza tangenciam a poesia, lembrando as póstumas Canções sem metro (1900), poemas em prosa, de clara extração simbolista. Observe-se este trecho, do capítulo “Quem persegue. Quem defende”, em que o impossível silêncio é valorizado acima de qualquer outra percepção:

 

Por sobre os píncaros arredondados das montanhas resvalavam massas de nevoeiro até se deixarem cair lento a lento pelas quebradas. Por toda a parte reinava o silêncio. (p. 119)

 

Do capítulo “A volta”, um trecho em que o realismo da narrativa se deixa envolver em um halo de irrealidade:

 

A lua, vermelha como a lanterna sangrenta de algum gênio das trevas, avançava tristonha pelos céus além. A atmosfera, tristemente nublada, mal coava uma frouxa claridade que dava a tudo uma feição fantástica. (p. 88)

 

Era o que o autor chamava de “poesia selvática”.

A par da violência que permeia a narrativa, o naturalista Raul Pompeia defende teses hoje consideradas racistas – como o de que o comportamento humano é uma herança genética, racial. Como atenuante, diga-se que ele herda mais de 300 anos de escravidão, promovida por uma elite branca e cristã, com laivos civilizatórios europeus.

(Conclui na próxima sexta-feira, 11/02)



[1] Apud MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, vol. IV (1877-1896). 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1979. p. 85-86.

[2] POMPEIA, Raul. Uma tragédia no Amazonas (ensaio literário). Manaus: Reggo, 2020.

[3] JOBIM, Anísio. O Amazonas: sua história (ensaio antropogeográfico e político). Col. Brasiliana, vol. 292. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. p. 52.