Zemaria Pinto
A
jangada – 800 léguas pelo Amazonas. O francês Julio Verne (1828-1905) é um dos mais
notáveis autores de ficção do século 19. Tudo que se diga dele hoje será apenas
o eco do que já foi dito antes – em algum tempo, em algum lugar. A jangada[1]
foi publicado em 1881, descrevendo a jornada de uma família de Iquitos, no
Peru, até a cidade de “Santa Maria de Belém do Pará”, em uma jangada de
dimensões amazônicas, durante quatro meses e meio. Mas a parte mais rocambolesca
da trama se passa em Manaus, “capital da província das Amazonas”.
Para
dar verossimilhança à extraordinária aventura, Verne pontua a narrativa com
enfadonhas informações enciclopédicas, como “a cidade de Manaus se situa a
exatamente 3°8’4” de latitude austral e 67°27’ de longitude a oeste do meridiano
de Paris” (p. 187). A referência a Paris, em vez de Greenwich, tem finalidade
óbvia: Paris era o umbigo do mundo. Qualquer cidadão que entendesse de
latitudes e longitudes faria ideia de quão longe a inóspita e selvagem Manaus
estava da civilizada capital francesa. Por justiça ao autor, entretanto, é
preciso dizer que a padronização com o meridiano britânico só ocorreria três
anos após a publicação do livro.
Mas, o
entrecho literário de A jangada, situado em 1852, faz jus ao melhor de
Julio Verne. João Garral, um brasileiro bem sucedido no Peru, resolve
empreender uma viagem pelo rio Amazonas, até Belém, onde sua filha se casaria
com um jovem médico. Seria uma viagem de quase-despedida, uma vez que,
retornando ao sítio de origem, não saberiam quando a família voltaria a se
reunir. Sucede que Garral tem um segredo em seu passado, o que é confrontado
por Torres, um capitão do mato, caçador de escravos, que atravessa o caminho da
família, disposto a destruir a felicidade conquistada com duro trabalho e muita
renúncia.
Nestes
tempos de obscurantismos cancelatórios nas artes e na cultura, é bem provável
que algum grupelho condene o livro de Verne ao “index librorum proibithorum”
das redes socialites. Para construir a monumental jangada – “como se uma parte
da fazenda de Iquitos se desprendesse das margens e descesse o Amazonas” (p.
53) – é dedicado um capítulo inteiro, onde se declara no título uma incontida
alegria: “Uma floresta inteira devastada”. E conclui, com um cinismo
involuntário:
João Garral nem precisava se preocupar com a
recuperação de uma floresta que vinte ou trinta anos bastariam para reerguer.
(p. 56)
A
lógica de Verne era de uma simplicidade atroz:
É a lei do progresso. Os índios estão fadados ao
desaparecimento, Com a chegada da raça anglo-saxã, aborígenes australianos e
tasmanianos se extinguiram. Depois dos conquistadores do Velho Oeste, os índios
da América do Norte sumiram. É possível que no futuro os árabes sejam
aniquilados pela colonização francesa. (p. 50)
Diante
do genocídio inevitável, esta última frase guarda até um certo orgulho
colonizador...
Essa
jangada faz parte do meu imaginário pessoal: um bairro inteiro chamado Cidade
Flutuante, que eu conheci criança e desapareceu nos meus dez anos. Não à toa, a
lembrança que me resta está envolta em uma bruma que dá à paisagem um tom de
cinza, como um filme expressionista. Era uma imensidão, que tomava centenas de
metros da frente de Manaus. Dentro d’água. Uma jangada ancorada à cidade, com
ruas, becos e quintais, gente e bicho de todo tipo, e toda a infraestrutura
básica de uma aglomeração urbana – de igrejas a prostíbulos, mas sem escolas,
postos de saúde ou o mínimo resquício de saneamento. A Cidade Flutuante foi
destruída com violência por rapazes vestidos de verde ou azul, em nome de uma
limpeza que dispensava adjetivos, e seus moradores, expulsos para as muitas
favelas criadas pela Zona Franca de Manaus. Menines, eu vi!
O
mundo perdido. O
escocês Arthur Conan Doyle (1859-1930) também brincou de Amazonas. E, na
cola de Verne, que encontrou dinossauros em sua Viagem ao centro da terra
(1864), Doyle fez de O mundo perdido[2]
(1912) uma franquia que espalha dinossauros por diversas partes do mundo, há cento
e dez anos. A trama tangencia o singelo: uma expedição britânica vem à Amazônia
conhecer um local que, inexplicavelmente, preserva elementos da pré-história,
uma alegoria que excede a qualquer classificação, especialmente quanto à tribo
de homens-macacos. Elementar, meus caros.
Brincadeiras
à parte, a verdade é que Conan Doyle era um excepcional criador de tramas e de
personagens. Malone e Challenger são antagonistas apenas na aparência. Na
prática eles se complementam: Malone, o narrador, encontra em Challenger o
parceiro perfeito para viver a grande aventura de sua vida. Eu só me pergunto
por que Conan Doyle escolheu a Amazônia, se sua história poderia ser situada em
qualquer lugar inóspito do planeta.
Depois
de passar por Belém e Manaus, a pequena expedição londrina cresce com a entrada
em cena de trabalhadores nativos. Eles navegam ainda por seis dias em um barco
a vapor, até chegarem a uma aldeia indígena onde desembarcam e o “Esmeralda”
retorna a Manaus. Challenger, o único que sabia as coordenadas exatas do vale
dos dinossauros – pois estivera lá antes e fora desacreditado, por não ter
provas –, exigira sigilo absoluto.
É por essa razão que sou compelido a ser vago em minha
narrativa e gostaria de advertir aos meus leitores de que qualquer mapa ou
diagrama, em que eu possa dar a relação dos lugares de um para o outro, pode
estar correto, mas os pontos da bússola estarão cuidadosamente confundidos, de
modo que não possam ser tomados como guia real da região. (p. 81-82)
Aliás,
essa solitária viagem anterior é a conexão de Challenger com o mundo real: “o
objetivo da minha jornada foi verificar algumas conclusões de Wallace e Bates”
(p. 35). Trata-se de uma referência aos teóricos evolucionistas Alfred Russel
Wallace e Henry Walter Bates, que trabalharam juntos na Amazônia, de 1848 a
1852.
A
criatividade narrativa começa com a forma dos capítulos, escritos pelo
jornalista Malone como cartas mal disfarçadas, a serem publicadas pelo jornal
patrocinador de sua participação na aventura, que segue num crescendo, onde
além de dinossauros e outros animais pré-históricos, são coadjuvantes plantas
exóticas, índios selvagens e até uma tribo de homens-macacos – um estágio
anterior da espécie humana, que comprovaria a tese evolucionista de Darwin.
Não foi
apenas Michael Crichton que se encantou com O mundo perdido. O
amazonense Márcio Souza escreveu O fim do terceiro mundo, um exercício
metalinguístico, onde Virginia Challenger, neta do insigne pesquisador,
descobre, em Manaus, em pleno século 20, incríveis fósseis capitalistas...
Este
trabalho se encerraria com comentários ligeiros sobre A árvore que chora
(1944), de Vicki Baum (1888-1960). Infelizmente, não encontrei o livro, que,
pelo que apurei, teve apenas uma edição em português, da editora Globo, em
1946. Isto a despeito da popularidade da autora, austríaca de nascimento,
romancista e roteirista consagrada em Hollywood: seu romance Grande Hotel
(1929), com roteiro de sua própria autoria, ganhou o Oscar de melhor filme, em
1932. Seu livro foi analisado pela professora Neide Gondim:
A árvore que chora fala da metamorfose do homem em
mercadoria enquanto vendedor de sua força de trabalho a alguma coisa que sente
na pele mas não vê; é subjetiva e se objetiva em seu próprio descrédito
enquanto homem; sente a força vampiresca e poderosa que lhe extrai do corpo a
alma e o sangue, num constante movimento autofágico.[3]
O “ouro
negro” – referência à cor das pelas de borracha, após um processo químico – foi
protagonista de um dos mais selvagens ciclos econômicos promovidos pela sanha
capitalista, desde que La Condamine o descreveu em meados do século 18. Tenório
Telles e Antônio Paulo Graça, que comparam os seringueiros de Baum aos mineiros
de carvão do Germinal, de Zola, não têm dúvidas sobre a gênese da obra.
O centro do romance, em torno do qual gira a dinâmica
das ações das personagens e dos interesses econômicos em disputa, é a borracha
e o sistema de produção arquitetado para viabilizar a sua exploração mercantil.
O fluxo da narrativa se desenrola em paralelo com o processo de exploração do
látex, seu comércio e novas formas de produção e usos.[4]
Parece-me
que – assim como para Pompeia, Verne e Doyle – não haver conhecido a Amazônia
de perto não fez falta à criatividade da Sra. Baum. Não se pode dizer o mesmo,
entretanto, de uma personagem que passou alguns anos enfronhada em um seringal,
retornando de lá com um romance que o tempo vai aos poucos apagando. Refiro-me
a A selva (1930), do português Ferreira de Castro, um romance frouxo,
falsamente realista, assentado em bases fora da realidade da época, cujo maior
mérito foi o de ecoar a denúncia de Euclides da Cunha, da exploração dos
seringueiros, fora de qualquer padrão de humanidade – com mais de 20 anos de
atraso.[5]
Uma
tragédia no Amazonas,
A jangada e O mundo perdido passam por literatura de entretenimento.
E o são, pois esta é uma das funções da literatura: divertir. Mas, não teriam
perdurado no tempo se não tivessem uma outra qualidade: a de fazer pensar. Seja
na violência de que é vítima a família de Eustáquio; seja na injustiça de que é
vítima o patriarca da família Garral; seja na tenacidade de Challenger, que
acredita, às raias do egoísmo, sobretudo em si mesmo. O imaginário amazônico
foi o pano de fundo – entre inverossímil e absurdo – para essas tramas. Para
nós, amazônidas, o imaginário em nada mudou a partir dessas tramas – mas elas,
sem dúvida, cresceram muito com ele.
[1]
VERNE, Júlio. A jangada – 800 léguas pelo Amazonas. Tradução: Elisa
Rodrigues e Julia Fervenza. Porto Alegre: L&PM, 2020.
[2]
DOYLE, Arthur Conan. O mundo perdido. Tradução: Silvio Antunha. Jandira:
Ciranda Cultural, 2019.
[3]
GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994. p.
250.
[4]
TELLES, Tenório; GRAÇA, Antônio Paulo. Estudos de literatura do Amazonas.
Manaus: Valer, 2021. p. 174.
[5]
Para mais informações, consultar PINTO, Zemaria. A selva: a verdade da
ficção e a ficção da verdade. Manaus: Valer, 2021.