Amigos do Fingidor

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

O imaginário amazônico em três romances improváveis – 2/2

 Zemaria Pinto

 

A jangada – 800 léguas pelo Amazonas. O francês Julio Verne (1828-1905) é um dos mais notáveis autores de ficção do século 19. Tudo que se diga dele hoje será apenas o eco do que já foi dito antes – em algum tempo, em algum lugar. A jangada[1] foi publicado em 1881, descrevendo a jornada de uma família de Iquitos, no Peru, até a cidade de “Santa Maria de Belém do Pará”, em uma jangada de dimensões amazônicas, durante quatro meses e meio. Mas a parte mais rocambolesca da trama se passa em Manaus, “capital da província das Amazonas”.

Para dar verossimilhança à extraordinária aventura, Verne pontua a narrativa com enfadonhas informações enciclopédicas, como “a cidade de Manaus se situa a exatamente 3°8’4” de latitude austral e 67°27’ de longitude a oeste do meridiano de Paris” (p. 187). A referência a Paris, em vez de Greenwich, tem finalidade óbvia: Paris era o umbigo do mundo. Qualquer cidadão que entendesse de latitudes e longitudes faria ideia de quão longe a inóspita e selvagem Manaus estava da civilizada capital francesa. Por justiça ao autor, entretanto, é preciso dizer que a padronização com o meridiano britânico só ocorreria três anos após a publicação do livro.

Mas, o entrecho literário de A jangada, situado em 1852, faz jus ao melhor de Julio Verne. João Garral, um brasileiro bem sucedido no Peru, resolve empreender uma viagem pelo rio Amazonas, até Belém, onde sua filha se casaria com um jovem médico. Seria uma viagem de quase-despedida, uma vez que, retornando ao sítio de origem, não saberiam quando a família voltaria a se reunir. Sucede que Garral tem um segredo em seu passado, o que é confrontado por Torres, um capitão do mato, caçador de escravos, que atravessa o caminho da família, disposto a destruir a felicidade conquistada com duro trabalho e muita renúncia.

Nestes tempos de obscurantismos cancelatórios nas artes e na cultura, é bem provável que algum grupelho condene o livro de Verne ao “index librorum proibithorum” das redes socialites. Para construir a monumental jangada – “como se uma parte da fazenda de Iquitos se desprendesse das margens e descesse o Amazonas” (p. 53) – é dedicado um capítulo inteiro, onde se declara no título uma incontida alegria: “Uma floresta inteira devastada”. E conclui, com um cinismo involuntário:

 

João Garral nem precisava se preocupar com a recuperação de uma floresta que vinte ou trinta anos bastariam para reerguer. (p. 56)

 

A lógica de Verne era de uma simplicidade atroz:

 

É a lei do progresso. Os índios estão fadados ao desaparecimento, Com a chegada da raça anglo-saxã, aborígenes australianos e tasmanianos se extinguiram. Depois dos conquistadores do Velho Oeste, os índios da América do Norte sumiram. É possível que no futuro os árabes sejam aniquilados pela colonização francesa. (p. 50)

 

Diante do genocídio inevitável, esta última frase guarda até um certo orgulho colonizador...

Essa jangada faz parte do meu imaginário pessoal: um bairro inteiro chamado Cidade Flutuante, que eu conheci criança e desapareceu nos meus dez anos. Não à toa, a lembrança que me resta está envolta em uma bruma que dá à paisagem um tom de cinza, como um filme expressionista. Era uma imensidão, que tomava centenas de metros da frente de Manaus. Dentro d’água. Uma jangada ancorada à cidade, com ruas, becos e quintais, gente e bicho de todo tipo, e toda a infraestrutura básica de uma aglomeração urbana – de igrejas a prostíbulos, mas sem escolas, postos de saúde ou o mínimo resquício de saneamento. A Cidade Flutuante foi destruída com violência por rapazes vestidos de verde ou azul, em nome de uma limpeza que dispensava adjetivos, e seus moradores, expulsos para as muitas favelas criadas pela Zona Franca de Manaus. Menines, eu vi!

 

O mundo perdido. O escocês Arthur Conan Doyle (1859-1930) também brincou de Amazonas. E, na cola de Verne, que encontrou dinossauros em sua Viagem ao centro da terra (1864), Doyle fez de O mundo perdido[2] (1912) uma franquia que espalha dinossauros por diversas partes do mundo, há cento e dez anos. A trama tangencia o singelo: uma expedição britânica vem à Amazônia conhecer um local que, inexplicavelmente, preserva elementos da pré-história, uma alegoria que excede a qualquer classificação, especialmente quanto à tribo de homens-macacos. Elementar, meus caros.


Brincadeiras à parte, a verdade é que Conan Doyle era um excepcional criador de tramas e de personagens. Malone e Challenger são antagonistas apenas na aparência. Na prática eles se complementam: Malone, o narrador, encontra em Challenger o parceiro perfeito para viver a grande aventura de sua vida. Eu só me pergunto por que Conan Doyle escolheu a Amazônia, se sua história poderia ser situada em qualquer lugar inóspito do planeta.

Depois de passar por Belém e Manaus, a pequena expedição londrina cresce com a entrada em cena de trabalhadores nativos. Eles navegam ainda por seis dias em um barco a vapor, até chegarem a uma aldeia indígena onde desembarcam e o “Esmeralda” retorna a Manaus. Challenger, o único que sabia as coordenadas exatas do vale dos dinossauros – pois estivera lá antes e fora desacreditado, por não ter provas –, exigira sigilo absoluto.

 

É por essa razão que sou compelido a ser vago em minha narrativa e gostaria de advertir aos meus leitores de que qualquer mapa ou diagrama, em que eu possa dar a relação dos lugares de um para o outro, pode estar correto, mas os pontos da bússola estarão cuidadosamente confundidos, de modo que não possam ser tomados como guia real da região. (p. 81-82)

 

Aliás, essa solitária viagem anterior é a conexão de Challenger com o mundo real: “o objetivo da minha jornada foi verificar algumas conclusões de Wallace e Bates” (p. 35). Trata-se de uma referência aos teóricos evolucionistas Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates, que trabalharam juntos na Amazônia, de 1848 a 1852.  

A criatividade narrativa começa com a forma dos capítulos, escritos pelo jornalista Malone como cartas mal disfarçadas, a serem publicadas pelo jornal patrocinador de sua participação na aventura, que segue num crescendo, onde além de dinossauros e outros animais pré-históricos, são coadjuvantes plantas exóticas, índios selvagens e até uma tribo de homens-macacos – um estágio anterior da espécie humana, que comprovaria a tese evolucionista de Darwin.

Não foi apenas Michael Crichton que se encantou com O mundo perdido. O amazonense Márcio Souza escreveu O fim do terceiro mundo, um exercício metalinguístico, onde Virginia Challenger, neta do insigne pesquisador, descobre, em Manaus, em pleno século 20, incríveis fósseis capitalistas...    

 

Este trabalho se encerraria com comentários ligeiros sobre A árvore que chora (1944), de Vicki Baum (1888-1960). Infelizmente, não encontrei o livro, que, pelo que apurei, teve apenas uma edição em português, da editora Globo, em 1946. Isto a despeito da popularidade da autora, austríaca de nascimento, romancista e roteirista consagrada em Hollywood: seu romance Grande Hotel (1929), com roteiro de sua própria autoria, ganhou o Oscar de melhor filme, em 1932. Seu livro foi analisado pela professora Neide Gondim:

 

A árvore que chora fala da metamorfose do homem em mercadoria enquanto vendedor de sua força de trabalho a alguma coisa que sente na pele mas não vê; é subjetiva e se objetiva em seu próprio descrédito enquanto homem; sente a força vampiresca e poderosa que lhe extrai do corpo a alma e o sangue, num constante movimento autofágico.[3]

 

O “ouro negro” – referência à cor das pelas de borracha, após um processo químico – foi protagonista de um dos mais selvagens ciclos econômicos promovidos pela sanha capitalista, desde que La Condamine o descreveu em meados do século 18. Tenório Telles e Antônio Paulo Graça, que comparam os seringueiros de Baum aos mineiros de carvão do Germinal, de Zola, não têm dúvidas sobre a gênese da obra.

 

O centro do romance, em torno do qual gira a dinâmica das ações das personagens e dos interesses econômicos em disputa, é a borracha e o sistema de produção arquitetado para viabilizar a sua exploração mercantil. O fluxo da narrativa se desenrola em paralelo com o processo de exploração do látex, seu comércio e novas formas de produção e usos.[4]

 

Parece-me que – assim como para Pompeia, Verne e Doyle – não haver conhecido a Amazônia de perto não fez falta à criatividade da Sra. Baum. Não se pode dizer o mesmo, entretanto, de uma personagem que passou alguns anos enfronhada em um seringal, retornando de lá com um romance que o tempo vai aos poucos apagando. Refiro-me a A selva (1930), do português Ferreira de Castro, um romance frouxo, falsamente realista, assentado em bases fora da realidade da época, cujo maior mérito foi o de ecoar a denúncia de Euclides da Cunha, da exploração dos seringueiros, fora de qualquer padrão de humanidade – com mais de 20 anos de atraso.[5]

 

Uma tragédia no Amazonas, A jangada e O mundo perdido passam por literatura de entretenimento. E o são, pois esta é uma das funções da literatura: divertir. Mas, não teriam perdurado no tempo se não tivessem uma outra qualidade: a de fazer pensar. Seja na violência de que é vítima a família de Eustáquio; seja na injustiça de que é vítima o patriarca da família Garral; seja na tenacidade de Challenger, que acredita, às raias do egoísmo, sobretudo em si mesmo. O imaginário amazônico foi o pano de fundo – entre inverossímil e absurdo – para essas tramas. Para nós, amazônidas, o imaginário em nada mudou a partir dessas tramas – mas elas, sem dúvida, cresceram muito com ele.

 



[1] VERNE, Júlio. A jangada – 800 léguas pelo Amazonas. Tradução: Elisa Rodrigues e Julia Fervenza. Porto Alegre: L&PM, 2020.

[2] DOYLE, Arthur Conan. O mundo perdido. Tradução: Silvio Antunha. Jandira: Ciranda Cultural, 2019.

[3] GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994. p. 250.

[4] TELLES, Tenório; GRAÇA, Antônio Paulo. Estudos de literatura do Amazonas. Manaus: Valer, 2021. p. 174.

[5] Para mais informações, consultar PINTO, Zemaria. A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade. Manaus: Valer, 2021.