Zemaria Pinto[1]
Introdução e fundamentação. A Relacion
del nuevo descubrimiento del famoso rio grande de las Amazonas[2] foi escrita por
Gaspar de Carvajal[3]
pouco tempo após os feitos de que dá notícia, entre 1542 e 1543. Testemunha
ocular dos fatos narrados, Carvajal pretendia com seu texto mostrar que
Francisco de Orellana[4] não
traíra Gonzalo Pizarro, enumerando os incidentes que resultaram numa aventura diversa
do que fora planejado (MARTINS, p. 41). A ira de Pizarro, e de muitos
historiadores, era com o fato de que o acaso reservou a glória histórica ao
subalterno, enquanto o comandante voltava para casa humilhado.
O texto de
Carvajal tem três camadas facilmente identificáveis, intercambiáveis entre si:
1 –
histórica: onde se registram os fatos ocorridos, especialmente após a separação
da expedição em dois grupos, relatando a descida pelo “rio de Orellana” até o
mar;
2 –
religiosa: onde se observa que o dominicano Carvajal pontua sua narrativa com
palavras de agradecimento e louvor a sua fé;
3 –
ideológica: a camada mais complexa, onde Carvajal pretende demonstrar a bravura
e a lealdade de seu capitão; para tal, lança mão de artifícios que hoje reconhecemos
como literários – daí o devaneio do título deste artigo; a mescla desses
recursos com a história revelou-se, com o tempo, um processo de mistificação
que, mesmo apontado desde o início por seus críticos, encontrou guarida no
imaginário popular.
Servindo-nos
das estratégias da Análise de Discurso, vamos indicar, dentro do texto de
Carvajal, os principais pontos em que ele troca a história pela literatura, num
exercício de realismo maravilhoso, culminando com a transposição do mito grego
das amazonas para a região que, de tão marcada pela narrativa do dominicano,
herdou-lhe o nome. São as primeiras representações da Amazônia, sob forma de
relato histórico, arquitetadas ora num simulacro de fantasia literária, ora na
mais deslavada mistificação.
Para que
compreendamos melhor como essas camadas discursivas se interpenetram formando
um só discurso, precisamos de duas definições: a primeira refere-se à aceitação
da religiosidade como uma forma de ideologia; a segunda é a própria definição
de ideologia, para efetivação deste trabalho. Eni Orlandi afirma que o trabalho
da ideologia é “produzir evidências, colocando o homem na relação imaginária
com suas condições materiais de existência” (ORLANDI, p. 46). Para efeito da
narrativa de Carvajal, considerando a defesa que ele faz de Orellana, pedimos
permissão à teórica para trocar “condições materiais” por “condições reais” de
existência. A mudança é sutil, de abrangência, colocando o sujeito Orellana no
seu papel histórico, visto por Carvajal, a partir do lugar de fala deste: o de
historiador, ainda que involuntário. Na sequência, a referida professora diz
que a característica comum da ideologia é “dissimular sua existência no
interior de seu próprio funcionamento, produzindo um tecido de evidências
‘subjetivas’, (...) nas quais se constitui o sujeito” (PÊCHEUX, apud ORLANDI,
p. 46). À medida que lemos a relação, percebemos essas evidências, que
“constroem” a personagem Orellana. Precisamos ainda ter em mente que linguagem
e ideologia, para a Análise de Discurso, não se somam; antes, constituem um
conflito, de onde o analista irá extrair seu trabalho: o de desnudar a
ideologia do autor, entranhada no emaranhado polissêmico da linguagem (FREIRE,
p. 15-16).
Situemo-nos,
pois, no contexto da narrativa, dentro da camada histórica do texto.
Em busca de riqueza e aventura. Com o objetivo de descobrir o País de La
Canela e o El Dorado – um fim claramente comercial –, a expedição liderada por
Gonzalo Pizarro sai de Quito em fevereiro de 1541, com 220 espanhóis e 4 mil
servos, entre negros e índios, sendo estes maioria.[5] No Vale do Zumaco, a 30
léguas[6] de
Quito, vindo de Santiago de Guayaquil, onde era “capitão general e tenente
governador”,[7] o
aventureiro Francisco de Orellana, à frente de 23 homens, se junta à expedição,
sendo nomeado lugar-tenente de Pizarro. Entenda-se que Orellana paga uma cota
pela sua participação, tendo direito a lucro proporcional.
As
primeiras palavras do texto:
Tudo que eu vou contar d’aqui por diante será como testemunha de vista
e homem a quem Deus quis dar parte de um tão novo e nunca visto descobrimento,
como é este que adiante direi. (CARVAJAL, p. 13)[8]
Carvajal
mescla, em quatro linhas, os três discursos que são as linhas-mestras do seu
texto: o discurso histórico (“Tudo o que vou contar... como testemunha de
vista”); o discurso religioso (“homem a quem Deus quis dar parte”); o discurso
ideológico (“um tão novo e nunca visto descobrimento”). É neste último, para o
qual a figura de Orellana seria a ilustração perfeita, que ele põe a ênfase.
Observe-se também que a forma como Carvajal se assenhoreia da narrativa
(“d’aqui por diante... adiante direi”) é a de quem vai narrar algo linearmente
– o que contraria a ideia de muitos comentaristas que falam no “diário” de
Carvajal. Não há um diário, mas sim uma relação – tecnicamente, um relatório,
com a finalidade de informar sobre um determinado feito ou acontecimento.
A
narrativa começa exatamente no ponto onde se frustra o primeiro objetivo da
expedição: depois de muitas privações, eles encontram uma região onde havia
muita canela, mas cuja exploração mostra-se economicamente inviável. Pizarro
ordena a construção de um bergantim – barco de médio porte, movido a remos –,
para seguir a exploração pelo rio, “que aí tinha meia légua de largura” (p.
14).
Embora fosse Orellana de parecer que se não fizesse tal barco, por
boas e justas razões, mas que voltássemos às cabanas e seguíssemos os caminhos
que levavam a terras já povoadas, insistiu Gonzalo Pizarro em que se
construísse a embarcação. (p. 14-15)
É
importante frisar a observação de Carvajal quanto a Orellana ser contra a
construção do bergantim. Sendo contra, por que ele depois “fugiria”, com um
contingente reduzido e sem provisões? O próprio Orellana foi o responsável, por
ordem de Pizarro, pela construção.
O barco
não navegou mais que 50 léguas: a falta de alimento e o despovoamento das
margens, que não ofereciam oportunidade de saques, geraram um início de motim,
reivindicando-se o retorno – não nos esqueçamos de que os espanhóis tinham
foros de fidalgos. Orellana pede permissão a Pizarro para sair com um grupo
pequeno em busca de alimento; se ao cabo de “três ou quatro dias ou o tempo que
lhe parecesse melhor” (p. 16-17) eles não retornassem, o grupo maior deveria
refazer o caminho de volta. Tanto desprendimento é observado pelo cronista,
embora sem muita sutileza, como um ato de bravura:
Vendo o capitão Orellana o que se passava e
a grande penúria em que todos estavam, tendo por sua vez perdido já tudo o que
possuía, pareceu-lhe que não seria honroso voltar depois de tantos prejuízos. (p. 16)
Pizarro concede.
Tomou consigo o Capitão Orellana a 57 homens, com os quais se meteu na
embarcação que construíra e em algumas canoas que haviam tomado aos índios,
começando a descer o rio com a intenção de volver logo que encontrasse víveres.
Mas tudo saiu ao contrário do que todos pensávamos, pois não descobrimos comida
num decurso de 200 léguas, nem nós a encontramos, padecendo por isso grandes
necessidades, como adiante se dirá. (p. 17)
[1] Do livro A história como metáfora e outros ensaios
amorosos. Manaus: Reggo/AAL, 2018. p. 121-148.
[2]
Este título, pelo qual o texto é divulgado hoje, não foi dado por Carvajal, que
nomeou o rio “descoberto” como “rio de Orellana”, mas por Toríbio de Medina, o
primeiro a publicar o texto integralmente, com os devidos créditos de autoria,
em 1894, 350 anos depois de escrito. Até então, o texto fora usado por vários
historiadores e comentaristas, como Gonzalo de Oviedo, que entrevistou o
próprio Orellana, mas nunca teve contato com Carvajal (BARLETTI, p. 2-3). Em
português, a única edição encontrável data de 1941.
O
título de Carvajal, na íntegra, é: Relación
que escrebió fray Gaspar de Carvajal, fraile de la Orden de Santo Domingo de
Guzmán, del nuevo descubrimiento del famoso Rio Grande que descubrio por muy
gran ventura El Capitán Francisco de Orellana desde su nacimiento hasta salir a
la mar, con cincuenta y siete hombres que trajo consigo y se echo a su ventura
por el dicho rio, y por el nombre del capitán que le descubrio se llamó el Rio
de Orellana (MARTINS, p. 55).
[3]
Gaspar de Carvajal nasceu em Trujillo, na, Espanha, em 1504, vindo a falecer em
Lima, no Peru, em 1584.
[4] Francisco de Orellana nasceu também em Trujillo, em 1511, e faleceu em uma segunda viagem à Nova Andaluzia – o nome que os espanhóis deram à região “descoberta” por ele –, em 1546. Algumas (poucas) fontes dão o seu nascimento como 1490, o que o envelheceria 21 anos, deixando-o com mais de 50 anos no período da aventura, o que, para os padrões da época, seria pouco provável.
[5]
Os números são aproximados. Carvajal cita a presença de negros escravos apenas
de passagem.
[6]
Um dos editores dos Diários de
Colombo diz que “a légua empregada por Colombo é aquela que era utilizada pelos
marinheiros italianos e equivale a 4 milhas. Por convenção, a milha náutica
vale 1.852 metros” (COLOMBO, p. 32). Portanto, se Carvajal usava a mesma
medida, cada légua corresponde a 7.408 metros. Mas essa medida é apenas uma
referência, pois não havia uma padronização internacional.
[7]
Informação fornecida pelo tradutor C. de Melo-Leitão (CARVAJAL, p. 13).
[8]
Todas as citações de Gaspar de Carvajal têm uma mesma fonte, mencionada nas
Referências. Deste ponto em diante, citaremos apenas as páginas onde as mesmas
se encontram.