Amigos do Fingidor

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Terra em transe: a história como metáfora 2/3

 Zemaria Pinto

 

O filme – um resumo. O filme tem início no palácio de Vieira, governador de Alecrim. Uma crise política está instaurada. O presidente Fernandez pede a renúncia de Vieira. Paulo Martins, assessor deste, defende a resistência armada. Vieira, demagogo até consigo mesmo, derrama-se em frases de efeito, como “o sangue das massas é sagrado” (p. 288). Por fim, dita a Sara uma carta-renúncia, que é um primor de clichê, concluindo:

 

Entrego meu caminho a Deus e espero que Deus, mais uma vez, abençoe Eldorado com a sua graça divina, lançando nos corações humanos o amor que tudo une (p. 288).

 

Paulo fecha essa cena, gritando, em tom debochado: “Está vendo, Sara, quem era o nosso líder? O nosso grande líder?” A cena seguinte mostra Paulo e Sara dentro de um automóvel. Paulo, ao volante, continua falando da fraqueza de Vieira, e a defender a resistência armada, com a qual Sara não concorda, argumentando lucidamente que “não precisamos de heróis”. Paulo responde de uma maneira inusitada: “Precisamos resistir, resistir! E eu preciso cantar!... Eu preciso cantar!...” Essa fala de Paulo, deixa entrever sua angústia entre a necessidade da luta política e a necessidade da arte – ele ao meio, dilacerado. Nesse momento, eles passam sem parar por uma barreira policial; os policiais os perseguem, atirando. Paulo é ferido. A partir deste ponto, estamos entregues ao delírio de Paulo. Ainda ao volante, ele declama:

 

Não é mais possível esta festa de medalhas,

este feliz aparato de glórias,

esta esperança dourada nos planaltos!

Não é mais possível esta festa de bandeiras

com Guerra e Cristo na mesma posição!

Assim não é possível,

a ingenuidade da fé, a impotência da fé... (p. 289-290)

 

A cena seguinte é emblemática: Paulo, andando com dificuldade pelas dunas, com uma metralhadora nas mãos. Na tela, excertos de um poema de Mário Faustino. Em off, a voz de Paulo, sempre em tom declamatório:

 

Estou morrendo agora, nesta hora.

Estou morrendo neste tempo

Estou correndo meu sangue e minhas lágrimas. (p. 290)

 

Pontuado por fragmentos de poemas de Paulo Martins, tem início o flashback que se estende até o final da película. Paulo começa a repassar sua vida, sem precisar desde quando, lembrando-se de Dom Porfírio Diaz, seu ex-mentor, desfilando em carro aberto, com um crucifixo e uma bandeira negra, numa associação eloquente com o fascismo. Na sequência, a representação mítica do início de tudo: empunhando a bandeira negra, Diaz chega do mar, com um padre e um “conquistador português”, interpretado por um conhecido participante de desfiles carnavalescos, Clovis Bornay, vestido como se fora entrar em uma passarela de fevereiro ou março. Eles são recebidos por um nativo também vestido de forma espalhafatosa.  Deliberadamente, o filme brinca com esses níveis de representação. A “primeira missa”, como ficou conhecida essa cena, é uma farsa deliberada, como a afirmar que a história de Eldorado cabe num desfile de escola de samba.

A próxima lembrança mostra o rompimento entre Paulo e Diaz, logo após a eleição deste para o senado. Paulo está cansado de seguir Diaz, e parece querer retornar à poesia. Uma personagem, Sílvia, poderia ser o pivô da decisão, pois ficamos sem saber com qual dos dois ela se relaciona. Talvez, com ambos.

A cena seguinte mostra a nova vida de Paulo Martins, em Alecrim, na redação do jornal Aurora Livre. O nome do jornal, aliás, merece uma reflexão: em tempos de censura, um jornal com esse título, um tanto romântico, é uma clara ironia. É o primeiro encontro entre Paulo e Sara. Aqui, temos algo curioso, que funciona como um libelo antinaturalista: a entrada de Sara é mostrada duas vezes, em planos separados e distintos, como a enfatizar a importância daquele acontecimento. Sara mostra a Paulo fotografias de crianças em estado de penúria, fala em crianças sem escolas, hospitais repletos, donativos insuficientes; diz que é preciso fazer alguma coisa, ao que Paulo contrapõe: “Precisamos de um líder político, isto sim...” (p. 293) O passo seguinte é contatar Dom Felipe Vieira, o candidato a ser articulado pelos dois. Nesse encontro, regado a vinho, começa também a intimidade entre Paulo e Sara.

É importante observar que Paulo e Sara não são paladinos a serviço de um sonho de justiça social. Estão, sim, ligados a uma entidade jamais nominada no filme, historicamente identificada com o Partido Comunista Brasileiro – o “Partidão”. Trabalhando nos bastidores da ilegalidade, o PCB apoiava líderes populistas, como um estágio necessário para chegar ao poder por moto próprio. Por outro lado, a relação entre Paulo e Sara metaforiza a crise vivida pela esquerda brasileira, dividida entre a luta armada e a resistência pacífica.

A sequência de cenas mostra flagrantes da campanha de Vieira, até que Paulo nos informa, em off, que Vieira vencera as eleições; entretanto, Paulo se pergunta “como responderia o governador eleito às promessas do candidato?” (p. 295). A resposta vem logo em seguida: uma concentração de camponeses revoltados, pois estão tentando tomar-lhes as terras, que ocupam há mais de 20 anos. Felício, o líder, falando com Vieira, ameaça resistir:

 

A gente acredita no sinhô, mas se a Justiça decidir que a gente deve deixar as terra, a gente morre mas num deixa não! (p. 296)

 

Paulo tenta intervir, pedindo “respeito” ao governador. Os dois discutem, Paulo agride Felício, derruba-o no chão. O povo se agita, mas é contido pela força policial. A voz de Felício ecoa: “Doutor Paulo, o sinhô era meu amigo!” (p. 296). Na cena seguinte, na casa de Paulo, ele discursa para Sara, bêbado, analisando o comportamento do “povo”, a partir da figura de Felício:

 

E eu fui lá, bati num pobre camponês porque ele me ameaçou... (...) Mas ele era tão covarde e tão servil! E eu queria provar que ele era covarde e servil... A fraqueza... gente fraca... sempre... gente fraca e com medo... (p. 297)

 

A próxima cena é simbólica: os camponeses rezam ao som de tiros, até que a câmera mostra o cadáver de Felício. Marinho, assessor de Vieira por indicação de Paulo, grita em alto e bom som que “o assassino trabalha pro governo!” (p. 297) Instalada a crise, Vieira descarta a prisão do Coronel Moreira, tido como o mandante do crime: questões políticas o impedem. A discussão com Paulo é violenta. Vieira rejeita romper os compromissos com quem financiou sua campanha, alegando que as bases, as massas, sabiam desses compromissos. Paulo, sempre grandiloquente, questiona Vieira: “E eu? E Sara? E os estudantes? Conseguimos o apoio das massas para quê?” (p. 298) Vieira ordena a repressão policial, para conter a revolta popular.

A cena seguinte mostra um Paulo expressionista, na sua dor caricata: “Pois eu recuso a certeza, a lógica, o equilíbrio...” (p. 300) Sara é seu oposto: racional, equilibrada. Com o olhar fixo na câmera, comunicando-se diretamente com a plateia, quase sussurrando, em nova empreitada antinaturalista, ela faz um discurso feminista numa época em que esse conceito ainda não era moda:

 

Eu queria me casar ter filhos, como qualquer outra mulher! Eu fui lançada no coração do meu tempo, eu levantei nas praças meu primeiro cartaz, eles vieram, fizeram fogo, amigos morreram e me prenderam e me deixaram muitos dias numa cela imunda com ratos mortos, e me deram choques elétricos, me seviciaram e me libertaram com as marcas (...) E se foram a casa, os filhos, o amor... as ambições normais de uma mulher normal... (p. 300)  

 

Na mesma sequência, mas num outro plano, respondendo ao convite de Paulo para que deixem tudo aquilo para trás, conclui que “a política e a poesia são demais para um só homem” (p. 300). Paulo responde com um poema; Sara replica com outro. Paulo conclui: “A poesia não tem sentido... Palavras... As palavras são inúteis...” (p. 301)

As cenas que se seguem é de um Paulo Martins perdido de si mesmo, vagando por Eldorado, a capital, participando de orgias patrocinadas pelo empresário nacionalista Julio Fuentes, e reencontrando Sílvia, que está casada com Álvaro, assessor de Fuentes: “Apenas a carne me ardia e nela eu me encontrava.” (p. 301)

Sara, acompanhada de Aldo e Marinho, da equipe de Vieira, visitam Paulo em sua casa. Ele está na companhia de Sílvia e a apresenta como sua amante. Sara, em nome de Vieira, pede que ele volte, para dar continuidade ao trabalho. Propõe também que Paulo, usando a imprensa de Fuentes, ataque Diaz, para enfraquecê-lo junto à Explint, a multinacional que o apoia. A proposta significa uma traição a Diaz, de quem Paulo fora íntimo, conhece-o como ninguém, e com quem rompeu por questões ideológicas.


Cenas de Terra em transe.


Mas Vieira ainda é a sua última esperança política, a esperança de uma mudança em benefício do povo. É preciso ligá-lo ao poder econômico de Fuentes, para anular Diaz e a Explint. Paulo, então, procura Fuentes e tenta convencê-lo de atacar Diaz, argumentando que seria uma forma de derrotar a multinacional imperialista, que é quem realmente manda em Eldorado: mantém o presidente Fernandez no poder e pode trocá-lo a qualquer momento – por Diaz, por exemplo. Fuentes concorda com o ataque a Diaz, dando plena liberdade a Paulo, que, em off, a voz do delírio, admite que ia começar “uma aventura política” cujas consequências não conseguia imaginar. Nesse momento, há um corte para a “realidade”: Paulo, ferido, arrastando-se nas dunas, e a voz em off, declarando:

 

Só de uma coisa eu sabia, Sara: eu ia por amor a você; embora eu estivesse longe eu lhe amava mais do que o próprio ódio que eu sentia por Eldorado. E destruir Diaz, Sara, era estar livre e voltar para você... Voltar para as promessas de Vieira, acreditar no seu amor à pátria. (p. 308)

 

Essa fala é outra chave do texto. Paulo é um poeta anacrônico, com a cabeça no século XIX, um romântico. Sua revolução é, antes de mais nada, por amor... Em uma elipse, entra no ar o programa de televisão produzido por Paulo Martins: Biografia de um aventureiro. O programa começa mostrando imagens variadas, de Diaz, quase sempre ridículas, caricatas. Em off, a voz de Paulo Martins, estridente e sensacionalista – sem o tom trágico-teatral da personagem, com o qual convivemos até ali –, mostra a trajetória de Diaz de líder estudantil a traidor de todas as causas que abraça, sempre em favor de quem assume o poder; fala também de sua relação com a Explint, desde negócios escusos, por ele intermediado, até o apoio às suas sucessivas eleições. Mostrando o poder de manipulação do veículo, sobre uma cena em que Diaz sorri ostensivamente, a voz em off diz: “...Eis quem é a imagem da virtude e da democracia; eis quem é o pai da pátria...”[1]  Outra elipse mostra Paulo Martins arrependido, tomado pelo remorso, na casa de Porfírio Diaz, que tem uma pistola na mão. Diaz faz um discurso contra a traição de Paulo; os dois discutem:

 

Diaz: Estamos podres pelos crimes que cometemos...

Paulo: Que você cometeu!

Diaz: Lavei as mãos no sangue, mas, no entanto, fui humano!

Paulo: O sangue dos estudantes, dos camponeses, dos operários!

Diaz: O sangue dos vermes! Lavamos nossa alma, purificamos o mundo!

Paulo: As nossas riquezas, as nossas carnes, as vidas, tudo. Vocês venderam tudo! As nossas esperanças, o nosso coração, o nosso amor, tudo! Vocês venderam tudo! (p. 310)

 

Diaz chega a encostar a pistola na cabeça de Paulo. Este, sempre de maneira teatral, esquiva-se atrás de imensas colunas. Os dois se encontram, lutam, rolam escada abaixo. Paulo espanca Diaz e deixa-o no chão, soluçando.

A cena que se segue, sob a legenda “Encontro de um líder com o povo” (p. 311), mostra uma festa promovida por Vieira, na área externa de seu palácio. O povo dança ao som do samba, carnavalizando o “protoshowmício”. O padre Gil,[2] aliado de Vieira, e um senador fazem apologias ao colonialismo e oferecem seu apoio ao governador de Alecrim. Vieira mal pode andar no meio da multidão eufórica. À parte, Sara incrimina Paulo como responsável por aquela desordem: “Você jogou Vieira no abismo...” (p. 312) O paralelo com acontecimentos então recentes na história do Brasil era claro: o comício da Central do Brasil, a 13 de março de 1964, estopim para o golpe militar que se consumaria 19 dias depois. Sara insta Jerônimo, líder sindical, a falar, o que seria impossível naquela balbúrdia. Aldo dispara a metralhadora para cima. Jerônimo fala olhando diretamente para a câmera, para nós. Seu discurso é pífio. Paulo tapa-lhe a boca com a mão, falando também para a câmera:

 

Estão vendo o que é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado! Já pensaram Jerônimo no poder? (p. 313)

 

Um homem do povo, maltrapilho, pede a palavra e desqualifica Jerônimo, afirmando que “o povo sou eu que tenho sete filhos e não tenho onde morar!” (p. 313) Ele é execrado pela multidão, aos gritos de “Extremista! Extremista!” (p. 313) Um segurança esmurra-o no ventre, passa uma corda em torno do seu pescoço e mete o cano de um revólver em sua boca. A morte do homem encerra a festa. Aldo e um estudante repetem várias vezes, a um Paulo Martins transtornado, como um refrão: “A irresponsabilidade política! Seu anarquismo! A irresponsabilidade política! Seu anarquismo!” (p. 314) Diante da inevitabilidade da intervenção federal, Vieira assume seu papel histórico, perante Paulo e Sara:

 

Eu recuei várias vezes, adiando problemas do presente para pensar no futuro. Mas se eu transfiro o presente para o futuro encontrarei apenas um futuro acumulado de maiores tragédias. Por isso temos a necessidade de começar a enfrentar agora os inimigos internos e externos de Eldorado! Unir as massas! Romper de vez! Deixar o vagão correr solto! (p. 314-315)

 

A sequência mostra Dom Porfírio Diaz tentando convencer Julio Fuentes a apoiá-lo em um golpe contra o presidente Fernandez, antes que Vieira ganhe as eleições e enterre de vez as pretensões de todos. A lógica de Diaz é que, uma vez Vieira no poder – o povo no poder! –, Fuentes será isolado. Para que o golpe dê certo, é preciso que a Explint participe, numa representação da união entre o capital multinacional e o empresariado nacionalista, cujo maior valor é Julio Fuentes. Álvaro, que a tudo assiste, conta a Paulo o encontro e o acordo. Na sua avaliação, a união das três forças – Explint, Diaz e Fuentes – representa o fim de Vieira. Álvaro diz que Paulo só tem dois caminhos: alia-se com a nova força ou parte para o exílio. “Telefone a Julio e venda a alma.” (p. 318) Mas Paulo está decidido: “Irei com Vieira até o fim.” (p. 318). Álvaro, angustiado com a traição de Fuentes, suicida-se.

Representando a campanha em curso, uma série de pequenas cenas mostra, alternadamente, Vieira, sempre no meio do povo, e Diaz, sozinho e com a bandeira negra e o crucifixo nas mãos. A simbologia é clara: o povo está com Vieira, que fala a sua linguagem; Diaz, falando sozinho, alicerça seu discurso em três pilares: Deus, Pátria e Família. A alusão à TFP – Tradição, Família e Propriedade, organização de extrema direita que apoiou a ditadura militar no Brasil – é transparente.

Neste ponto, voltamos ao início da trama, início do filme, no palácio de Vieira. De maneira concisa e rápida, os diálogos repetem-se, com pequenas variações, até a fala de Paulo, debochando de Vieira, que se recusou a resistir. Da mesma forma, repete-se a cena dentro do carro, a passagem pela barreira, os tiros. Em paralelo, toma forma a coroação de Dom Porfírio Diaz, pelo carnavalesco Conquistador Português e sua entourage, vestida a caráter, isto é, para um desfile de escola de samba. Trata-se, claro, de uma metáfora: Diaz torna-se ditador. Enquanto o ritual se desenrola, Paulo, ferido, sobe as escadas, dramaticamente, de costas, com a metralhadora em punho, recitando:

 

Ah, não é possível acreditar que tudo isso seja verdade!

Até quando suportaremos?

Até quando além da fé e da esperança suportaremos?

Até quando além da paciência e do amor suportaremos?

Até quando além da inconsciência? (p. 323-324)

 

No seu delírio, Paulo atira em Diaz. No mesmo instante – utilizando-se de cortes que superpõem uma cena a outra –, na rodovia, próximo à praia, um breve retorno à realidade:

 

Sara: O que prova a sua morte? O quê?

Paulo: O triunfo da Beleza e da Justiça! (p. 324)

 

Durante essa breve fala de Paulo, por não mais que alguns fotogramas, passam-se algumas cenas significativas, no local da coroação: aparecem pessoas do povo; Paulo levanta a coroa e deixa-a cair. Mas, logo em seguida, o Conquistador Português deposita a coroa na cabeça de Dom Porfírio Diaz, que discursa com uma ênfase enlouquecida:

 

Dominarei esta terra, botarei estas histéricas tradições em ordem! Pela força, pelo amor da força, pela harmonia universal dos infernos chegaremos a uma civilização. (p. 324)

 

Nas dunas, ao som de tiros, sirenes e bombardeios, Paulo empunha a metralhadora, aponta a arma para o infinito, e dobra os joelhos, lentamente.

 



[1] Essa fala não está no roteiro em livro. No DVD, a cena desenrola-se entre 1h 08min 19s e 1h 08 25s.

[2] Em nenhum momento do roteiro ou do filme o padre é nomeado; entretanto, nos letreiros finais, o nome da personagem aparece associado ao nome do ator Jofre Soares. Segundo Luiz Carlos Barreto, no documentário citado, isso aconteceu por imposição de um censor: se o padre não tivesse um nome, estaria representando toda a igreja católica – o que era, aliás, a intenção do roteirista-diretor.