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sexta-feira, 21 de abril de 2023

Terra em transe: a história como metáfora 3/3


Zemaria Pinto

 

Barroco-Expressionista. O caráter barroco do cinema de Glauber Rocha já foi explorado a exaustão. Para Ismail Xavier, por exemplo, “Terra em transe leva ao extremo a dimensão barroca do cinema de Glauber” (XAVIER, 2001, 131). E mais, referindo-se ainda a Terra em transe:

 

O olhar de Glauber é táctil, sensual, enquanto a moldura da sua representação é alegórica, tendente à abstração, numa convivência de contrários tipicamente barroca. (XAVIER, 2001, 129)

 

Claudio M. Valentinetti, ao referir-se ao dialogismo do filme com a obra de Eisenstein, diz que:

 

Todos esses elementos levam-nos a considerar um outro aspecto que vem a ser fundamental nos filmes de Glauber: o barroco, aqui entendido como um componente particular da cultura de derivação ibérica de outros países coloniais. (VALENTINETT, 2002, 83)

 

O que eu discuto agora é o caráter expressionista de Terra em transe. Não no aspecto formal, consagrado por diretores como Robert Wiene (O gabinete do Dr. Caligari), Friedrich Murnau (Nosferatu) e Fritz Lang (Metrópolis). O expressionismo de Terra em transe está na sua representação enquanto objeto visual. Vejamos uma definição bem didática do que seja o Expressionismo:

 

Movimento artístico e literário nascido no início do século na Alemanha, como reação à estética tradicional, buscando um percurso de vanguarda e caracterizando-se pela deformação das figuras apresentadas, no intuito de chocar o gosto burguês e a mentalidade dominante, apresentando o absurdo e o grotesco da guerra, da exploração social e da morte. (PAZ; MONIZ, 1997, p. 91)

 

Outra definição, por um estudioso do movimento, Malcolm Pasley:

 

Querermos colar esta etiqueta (i.e., expressionismo) num determinado autor ou numa obra particular vai depender da importância que atribuirmos ao seguinte: 1) o emprego de diversos artifícios antinaturalistas ou “abstrativos”, tais como condensação sintática ou sequências pictóricas simbólicas; 2) o assalto às vacas sagradas da burguesia guilhermina à partir de uma posição internacionalista de esquerda; 3) a escolha do tema de regeneração ou renovação espiritual e 4) a adoção de um tom declamatório fervoroso. (PASLEY, p. 579, apud FURNESS, 1990, p. 7-8)

 

Então, em vez de “enquadrar” Terra em transe nos postulados acima – o que seria, por tudo o que já foi dito, óbvio e redundante –, valho-me de um depoimento de Nelson Rodrigues, dramaturgo cuja obra é reconhecidamente expressionista.[1] Em crônica publicada no Correio da Manhã, em 16 de maio de 1967 – o filme estreara dia 8, uma segunda-feira –, Nelson escreve:

 

Na madrugada de sexta para sábado e domingo, continuei agarrado ao filme. E sentia por dentro, nas minhas entranhas, o seu rumor. (...) Terra em transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os Sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda. (RODRIGUES, 1985, p. 23)

 

O Expressionismo confunde-se com o próprio conceito de Modernismo, constituindo-se antes como uma visão de mundo que como um movimento estético. É nesse sentido que Terra em transe é um filme expressionista: antinaturalista; antiburguês; vanguardista; declamatório; utilizando personagens deformadas; buscando a renovação a partir da denúncia do absurdo e do grotesco das relações humanas – pessoais e políticas.

 

Paulo Martins e a fome do absoluto. A figura de Paulo Martins domina o filme em sua totalidade. Terra em transe é o país interior de Paulo Martins. Em um ensaio onde discute os limites entre poesia e realidade, a escritora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, afirma:

 

O poeta é aquele que vive com as coisas, que está atento ao Real, que sabe que as coisas existem. (...) Esta relação com a realidade é essencialmente encontro e não conhecimento. (...) O poeta não tem curiosidade do Real, mas sim necessidade do real. A verdadeira ânsia dos poetas é uma ânsia de fusão e de unificação com as coisas. (...) Esta fome do encontro absoluto com a Poesia está presente em todos os poetas, com mais ou menos força, com mais ou menos evidência. (ANDRESEN, 1960, p. 53-54)

 

Paulo Martins é um poeta dilacerado entre a necessidade exterior da ação política exigida pelo momento histórico e a necessidade interior exigida pela poesia. Sara percebe o sofrimento de Paulo ao afirmar que “a política e a poesia são demais para um só homem” (p. 300). Paulo quer fundir-se com as coisas e com isso encontrar-se no absoluto – tanto no nível abstrato da arte quanto no nível da realidade cotidiana, que não comporta reflexão, mas ação. É isso que ele tenta o tempo todo – seja ao lado de Diaz, pelo ele representa de falso desprendimento:

 

O que eu não posso explicar aos meus inimigos são as razões que me levaram a abandonar o exercício da solidão pelo sacerdócio da vida pública! (p. 290-291)

 

Seja ao lado de Vieira, o líder populista que simboliza o fracasso da esquerda na América Latina.

A última fala de Paulo Martins, ao responder a Sara sobre o sentido de sua morte, é reveladora desse dilaceramento, dessa fome pelo “encontro absoluto com a Poesia”: “O triunfo da Beleza e da Justiça!” (p. 324) Ora, um conceito e outro só serão encontrados juntos de forma idealizada, porque um não depende do outro para realizar-se. Para Cláudio da Costa,

 

Essa frase de Paulo é absolutamente irônica. Se ele crê nesses valores absolutos e universais, sua morte não possibilita nenhuma mudança, não prova nenhuma justiça. (COSTA, 2000. p.76)

 

Paulo é um romântico utópico. Seu ideal é ter como poeta voz ativa na construção da justiça social. Mas o poeta, desde Platão, é um pária, ou, na melhor das hipóteses, no imaginário popular, um ser à parte. Mas Paulo não se dá conta disso, entregando-se em holocausto, como penitência pela sua queda –, metáfora da queda de toda uma geração de intelectuais (poetas, inclusive), que tentaram mudar o curso da história, mas foram dominados pela força – “pelo amor da força” (p. 324), como vocifera, em sua derradeira fala, o ditador Diaz.

 

Ópera e carnaval. A trilha sonora tem um papel destacado no filme. As imagens de Alecrim são sempre acompanhadas de uma trilha carnavalesca e de temas afros. Outro detalhe é que Dom Felipe Vieira nunca está só, afinal o carnaval só tem sentido coletivamente. As imagens de Eldorado, por outro lado, especialmente as que ilustram as cenas de Dom Porfírio Diaz, aproveitam temas de Villa-Lobos, Carlos Gomes e Verdi – deste, a abertura do Otello, bem apropriada para uma trama plena de traições sugeridas.  Nas cenas de orgia, das quais Diaz não participa, prevalece a sensualidade do jazz. É importante assinalar a solidão que envolve a figura de Diaz. Nem a presença eventual de Sílvia anula essa solidão. Em entrevista a uma revista francesa, a propósito da cena em que Paulo e Diaz discutem sobre amizade e traição, Glauber revela: “queria sublimar um lado homossexual e solitário de Diaz.” (VALENTINETTI, 2002, p. 84) 

 

A mulher e o bibelô. Duas personagens femininas orbitam em torno de Paulo Martins: Sara e Sílvia. As duas são os polos opostos de um mesmo eixo. Sara é a protofeminista, num momento em que o conceito ainda não ganhara as ruas. Tem um discurso próprio, independente. E nem seu amor por Paulo a faz desviar de seus objetivos. Sílvia, pelo contrário, é a mulherzinha, a dondoca, submissa e desprovida de qualquer traço de vontade própria. Ela não tem uma fala sequer no filme. Na mesma entrevista acima citada, Glauber diz, a propósito da personagem Sílvia:

 

Não consegui colocar-lhe na boca uma só palavra. Escrevi diversos diálogos para ela, mas todos foram cortados depois, já que tudo que dizia era ridículo. (VALENTINETTI, 2002, p. 87)

 

 Sara e Sílvia são metáforas da condição feminina, desde sempre.

 

Personagens alegóricas. Diaz, Vieira, Fuentes, Felício, Jerônimo, Aldo e o padre Gil são personagens simbólicas, representantes dos segmentos sociais que compõem o universo onde Paulo gravita. Do ponto de vista literário, são personagens sem nenhum aprofundamento psicológico. Entretanto, para servir ao arcabouço do roteiro, não poderia ser diferente. Elas existem para dar verossimilhança ao dilaceramento de Paulo. Elas representam o domínio no centro do qual Paulo se imola: ele trai Diaz, porque este não o merecia; mais adiante, é traído por Fuentes e, de certa forma, porque não corresponde às suas expectativas, por Vieira. Por este ângulo, a história de Paulo resume-se a uma história de traições, muito bem explorada no “documentário” à Cidadão Kane que ele produz sobre Diaz, onde o verbo trair é ouvido diversas vezes.

Uma personagem muito curiosa é o “repórter” vivido pelo ator Zózimo Bulbul, que, sem nenhuma fala, está sempre com uma aparelhagem a tiracolo, incluindo um microfone, registrando os acontecimentos em Alecrim. Sua presença chega a ser bizarra, mas ela deve ser vista como mais um símbolo, dos muitos semeados ao longo do filme – a imprensa emudecida, mas ativa? – e é, sem dúvida, pelo inusitado e patético das situações, um índice expressionista.

 

A História como metáfora. Terra em transe, é preciso enfatizar, é uma ficção construída a partir de fatos tragicamente reais. Criado no calor dos acontecimentos, buscando fugir da censura, mas sem perder de vista o objetivo de forjar um novo cinema para o Brasil – um cinema que não fosse apenas entretenimento, mas servisse também à reflexão; um cinema que não mudasse o estado de coisas, não promovesse revoluções, mas que pudesse mudar pessoas, provocar revoluções interiores. Pensar o Brasil a partir de uma criação estética – para além de um artefato meramente comercial. Terra em transe metaforiza a História para contá-la com toda isenção. O atingimento desse objetivo está selado na reação à esquerda e à direita: um filme desagradável, feio, “confuso”, que, ao recriar a História, transcende-a, elevando-a ao patamar de mito.

Passados mais de 40 anos, os nomes dos ditadores assassinos, dos covardes líderes populistas, dos empresários falsamente nacionalistas, dos anônimos líderes populares, das mulheres que saíram às ruas, dos poetas que deram a vida pela causa – todos foram esquecidos. Mas a mitologia de toda uma época está gravada a fogo em cada fotograma de Terra em transe.

 

REFERÊNCIAS

 

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Poesia e realidade. In: Colóquio, revista de artes e letras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, nº 8, abril, 1960.

COSTA, Cláudio da. Cinema Brasileiro (anos 60-70): dissimetria, oscilação e simulacro. Rio de janeiro: 7Letras, 2000.

FURNESS, R. S. Expressionismo. Tradução: Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1990.

LEITE, Maurício Gomes. Terra em transe. In: Glauber por Glauber. Mostra da obra completa de Glauber Rocha, como ele a desejou. Filmes Exposição Livros Vídeo (catálogo). Edição: João Luiz Vieira. Embrafilme, 1985.

MACIEL, Katia. Poeta, herói, idiota. O pensamento de cinema no Brasil. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000.    

PAZ, Olegário; MONIZ, António. Dicionário breve de termos literários. Lisboa: Editorial Presença, 1997.

ROCHA, Glauber. Roteyros do terceyro mundo. Organização: Orlando Senna. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1985.

RODRIGUES, Nelson. Terra em transe. In: Glauber por Glauber. Mostra da obra completa de Glauber Rocha, como ele a desejou. Filmes Exposição Livros Vídeo (catálogo). Edição: João Luiz Vieira. Embrafilme, 1985.

VALENTINETTI, Claudio M. Glauber, um olhar europeu. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi / Prefeitura do Rio, 2002.

VIANA, Antônio Moniz. Terra em transe. In: Glauber por Glauber. Mostra da obra completa de Glauber Rocha, como ele a desejou. Filmes Exposição Livros Vídeo (catálogo). Edição: João Luiz Vieira. Embrafilme, 1985.

XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

 

 

DEPOIS DO TRANSE. Documentário realizado pela equipe de restauração de Terra em transe, com entrevistas e cenas inéditas. Brasil: 2006. DVD. 113min.

TERRA EM TRANSE. Direção e roteiro: Glauber Rocha. Produção executiva: Zelito Viana. Fotografia: Luiz Carlos Barreto. Montagem: Eduardo Escorel. Elenco: Jardel Filho, Glauce Rocha, Paulo Autran, José Lewgoy, Paulo Gracindo e outros. Brasil: 1967. DVD. 115min.

 



[1] Ver FRAGA, Eudinyr. Nelson Rodrigues Expressionista. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.