Zemaria Pinto
Barroco-Expressionista. O caráter barroco do cinema de Glauber Rocha
já foi explorado a exaustão. Para Ismail Xavier, por exemplo, “Terra em transe leva ao extremo a
dimensão barroca do cinema de Glauber” (XAVIER, 2001, 131). E mais,
referindo-se ainda a Terra em transe:
O olhar de Glauber é táctil, sensual, enquanto a moldura da sua
representação é alegórica, tendente à abstração, numa convivência de contrários
tipicamente barroca. (XAVIER, 2001, 129)
Claudio M.
Valentinetti, ao referir-se ao dialogismo do filme com a obra de Eisenstein,
diz que:
Todos esses elementos levam-nos a considerar um outro aspecto que vem
a ser fundamental nos filmes de Glauber: o barroco, aqui entendido como um
componente particular da cultura de derivação ibérica de outros países
coloniais. (VALENTINETT, 2002, 83)
O que eu
discuto agora é o caráter expressionista de Terra
em transe. Não no aspecto formal, consagrado por diretores como Robert
Wiene (O gabinete do Dr. Caligari),
Friedrich Murnau (Nosferatu) e Fritz
Lang (Metrópolis). O expressionismo
de Terra em transe está na sua
representação enquanto objeto visual. Vejamos uma definição bem didática do que
seja o Expressionismo:
Movimento artístico e literário nascido no início do século na
Alemanha, como reação à estética tradicional, buscando um percurso de vanguarda
e caracterizando-se pela deformação das figuras apresentadas, no intuito de
chocar o gosto burguês e a mentalidade dominante, apresentando o absurdo e o
grotesco da guerra, da exploração social e da morte. (PAZ; MONIZ, 1997, p. 91)
Outra
definição, por um estudioso do movimento, Malcolm Pasley:
Querermos colar esta etiqueta (i.e.,
expressionismo) num determinado autor ou numa obra particular vai depender da
importância que atribuirmos ao seguinte: 1) o emprego de diversos artifícios
antinaturalistas ou “abstrativos”, tais como condensação sintática ou
sequências pictóricas simbólicas; 2) o assalto às vacas sagradas da burguesia
guilhermina à partir de uma posição internacionalista de esquerda; 3) a escolha
do tema de regeneração ou renovação espiritual e 4) a adoção de um tom
declamatório fervoroso. (PASLEY, p. 579, apud FURNESS, 1990, p. 7-8)
Então, em
vez de “enquadrar” Terra em transe
nos postulados acima – o que seria, por tudo o que já foi dito, óbvio e
redundante –, valho-me de um depoimento de Nelson Rodrigues, dramaturgo cuja
obra é reconhecidamente expressionista.[1] Em crônica publicada no Correio da Manhã, em 16 de maio de 1967
– o filme estreara dia 8, uma segunda-feira –, Nelson escreve:
Na madrugada de sexta para sábado e domingo, continuei agarrado ao
filme. E sentia por dentro, nas minhas entranhas, o seu rumor. (...) Terra em transe era o Brasil. Aqueles
sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem
posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um
vômito triunfal. Os Sertões, de
Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter
sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda. (RODRIGUES, 1985, p. 23)
O
Expressionismo confunde-se com o próprio conceito de Modernismo,
constituindo-se antes como uma visão de mundo que como um movimento estético. É
nesse sentido que Terra em transe é
um filme expressionista: antinaturalista; antiburguês; vanguardista;
declamatório; utilizando personagens deformadas; buscando a renovação a partir
da denúncia do absurdo e do grotesco das relações humanas – pessoais e
políticas.
Paulo Martins e a fome do absoluto. A figura de Paulo Martins domina o filme em
sua totalidade. Terra em transe é o
país interior de Paulo Martins. Em um ensaio onde discute os limites entre
poesia e realidade, a escritora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen,
afirma:
O poeta é aquele que vive com as coisas, que está atento ao Real, que
sabe que as coisas existem. (...) Esta relação com a realidade é essencialmente
encontro e não conhecimento. (...) O poeta não tem curiosidade do Real, mas sim
necessidade do real. A verdadeira ânsia dos poetas é uma ânsia de fusão e de
unificação com as coisas. (...) Esta fome
do encontro absoluto com a Poesia está presente em todos os poetas, com
mais ou menos força, com mais ou menos evidência. (ANDRESEN, 1960, p. 53-54)
Paulo
Martins é um poeta dilacerado entre a necessidade exterior da ação política
exigida pelo momento histórico e a necessidade interior exigida pela poesia.
Sara percebe o sofrimento de Paulo ao afirmar que “a política e a poesia são
demais para um só homem” (p. 300). Paulo quer fundir-se com as coisas e com
isso encontrar-se no absoluto – tanto no nível abstrato da arte quanto no nível
da realidade cotidiana, que não comporta reflexão, mas ação. É isso que ele
tenta o tempo todo – seja ao lado de Diaz, pelo ele representa de falso
desprendimento:
O que eu não posso explicar aos meus inimigos são as razões que me
levaram a abandonar o exercício da solidão pelo sacerdócio da vida pública! (p.
290-291)
Seja ao
lado de Vieira, o líder populista que simboliza o fracasso da esquerda na
América Latina.
A última
fala de Paulo Martins, ao responder a Sara sobre o sentido de sua morte, é
reveladora desse dilaceramento, dessa fome pelo “encontro absoluto com a
Poesia”: “O triunfo da Beleza e da Justiça!” (p. 324) Ora, um conceito e outro
só serão encontrados juntos de forma idealizada, porque um não depende do outro
para realizar-se. Para Cláudio da Costa,
Essa frase de Paulo é absolutamente irônica. Se ele crê nesses valores
absolutos e universais, sua morte não possibilita nenhuma mudança, não prova
nenhuma justiça. (COSTA, 2000. p.76)
Paulo é um
romântico utópico. Seu ideal é ter como poeta voz ativa na construção da
justiça social. Mas o poeta, desde Platão, é um pária, ou, na melhor das
hipóteses, no imaginário popular, um ser à parte. Mas Paulo não se dá conta
disso, entregando-se em holocausto, como penitência pela sua queda –, metáfora
da queda de toda uma geração de intelectuais (poetas, inclusive), que tentaram
mudar o curso da história, mas foram dominados pela força – “pelo amor da
força” (p. 324), como vocifera, em sua derradeira fala, o ditador Diaz.
Ópera e carnaval. A trilha sonora tem um papel destacado no
filme. As imagens de Alecrim são sempre acompanhadas de uma trilha carnavalesca
e de temas afros. Outro detalhe é que Dom Felipe Vieira nunca está só, afinal o
carnaval só tem sentido coletivamente. As imagens de Eldorado, por outro lado,
especialmente as que ilustram as cenas de Dom Porfírio Diaz, aproveitam temas
de Villa-Lobos, Carlos Gomes e Verdi – deste, a abertura do Otello, bem apropriada para uma trama
plena de traições sugeridas. Nas cenas
de orgia, das quais Diaz não participa, prevalece a sensualidade do jazz. É
importante assinalar a solidão que envolve a figura de Diaz. Nem a presença
eventual de Sílvia anula essa solidão. Em entrevista a uma revista francesa, a
propósito da cena em que Paulo e Diaz discutem sobre amizade e traição, Glauber
revela: “queria sublimar um lado homossexual e solitário de Diaz.”
(VALENTINETTI, 2002, p. 84)
A mulher e o bibelô. Duas personagens femininas orbitam em torno de
Paulo Martins: Sara e Sílvia. As duas são os polos opostos de um mesmo eixo.
Sara é a protofeminista, num momento em que o conceito ainda não ganhara as
ruas. Tem um discurso próprio, independente. E nem seu amor por Paulo a faz
desviar de seus objetivos. Sílvia, pelo contrário, é a mulherzinha, a dondoca,
submissa e desprovida de qualquer traço de vontade própria. Ela não tem uma
fala sequer no filme. Na mesma entrevista acima citada, Glauber diz, a
propósito da personagem Sílvia:
Não consegui colocar-lhe na boca uma só palavra. Escrevi diversos
diálogos para ela, mas todos foram cortados depois, já que tudo que dizia era
ridículo. (VALENTINETTI, 2002, p. 87)
Sara e Sílvia são metáforas da condição
feminina, desde sempre.
Personagens alegóricas. Diaz, Vieira, Fuentes, Felício, Jerônimo, Aldo
e o padre Gil são personagens simbólicas, representantes dos segmentos sociais
que compõem o universo onde Paulo gravita. Do ponto de vista literário, são
personagens sem nenhum aprofundamento psicológico. Entretanto, para servir ao
arcabouço do roteiro, não poderia ser diferente. Elas existem para dar
verossimilhança ao dilaceramento de Paulo. Elas representam o domínio no centro
do qual Paulo se imola: ele trai Diaz, porque este não o merecia; mais adiante,
é traído por Fuentes e, de certa forma, porque não corresponde às suas
expectativas, por Vieira. Por este ângulo, a história de Paulo resume-se a uma
história de traições, muito bem explorada no “documentário” à Cidadão Kane que ele produz sobre Diaz,
onde o verbo trair é ouvido diversas vezes.
Uma
personagem muito curiosa é o “repórter” vivido pelo ator Zózimo Bulbul, que,
sem nenhuma fala, está sempre com uma aparelhagem a tiracolo, incluindo um
microfone, registrando os acontecimentos em Alecrim. Sua presença chega a ser
bizarra, mas ela deve ser vista como mais um símbolo, dos muitos semeados ao
longo do filme – a imprensa emudecida, mas ativa? – e é, sem dúvida, pelo
inusitado e patético das situações, um índice expressionista.
A História como metáfora. Terra
em transe, é preciso enfatizar,
é uma ficção construída a partir de fatos tragicamente reais. Criado no calor
dos acontecimentos, buscando fugir da censura, mas sem perder de vista o
objetivo de forjar um novo cinema para o Brasil – um cinema que não fosse
apenas entretenimento, mas servisse também à reflexão; um cinema que não
mudasse o estado de coisas, não promovesse revoluções, mas que pudesse mudar
pessoas, provocar revoluções interiores. Pensar o Brasil a partir de uma
criação estética – para além de um artefato meramente comercial. Terra em transe metaforiza a História
para contá-la com toda isenção. O atingimento desse objetivo está selado na
reação à esquerda e à direita: um filme desagradável, feio, “confuso”, que, ao
recriar a História, transcende-a, elevando-a ao patamar de mito.
Passados
mais de 40 anos, os nomes dos ditadores assassinos, dos covardes líderes
populistas, dos empresários falsamente nacionalistas, dos anônimos líderes
populares, das mulheres que saíram às ruas, dos poetas que deram a vida pela
causa – todos foram esquecidos. Mas a mitologia de toda uma época está gravada
a fogo em cada fotograma de Terra em
transe.
REFERÊNCIAS
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Poesia e
realidade. In: Colóquio, revista de
artes e letras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, nº 8, abril, 1960.
COSTA, Cláudio da. Cinema Brasileiro (anos 60-70): dissimetria, oscilação e simulacro.
Rio de janeiro: 7Letras, 2000.
FURNESS, R. S. Expressionismo. Tradução: Geraldo Gerson de Souza. São Paulo:
Perspectiva, 1990.
LEITE, Maurício Gomes. Terra em transe. In: Glauber por Glauber. Mostra da obra
completa de Glauber Rocha, como ele a desejou. Filmes Exposição Livros Vídeo
(catálogo). Edição: João Luiz Vieira. Embrafilme, 1985.
MACIEL, Katia. Poeta, herói, idiota. O pensamento de cinema no Brasil. Rio de
Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000.
PAZ, Olegário; MONIZ, António. Dicionário breve de termos literários.
Lisboa: Editorial Presença, 1997.
ROCHA, Glauber. Roteyros do terceyro mundo. Organização: Orlando Senna. Rio de Janeiro:
Alhambra/Embrafilme, 1985.
RODRIGUES, Nelson. Terra em transe. In: Glauber por Glauber. Mostra da obra
completa de Glauber Rocha, como ele a desejou. Filmes Exposição Livros Vídeo
(catálogo). Edição: João Luiz Vieira. Embrafilme, 1985.
VALENTINETTI, Claudio M. Glauber, um olhar europeu. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M.
Bardi / Prefeitura do Rio, 2002.
VIANA, Antônio Moniz. Terra em transe. In: Glauber por Glauber. Mostra da obra
completa de Glauber Rocha, como ele a desejou. Filmes Exposição Livros Vídeo
(catálogo). Edição: João Luiz Vieira. Embrafilme, 1985.
XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
DEPOIS DO TRANSE. Documentário realizado pela
equipe de restauração de Terra em transe, com entrevistas e cenas inéditas.
Brasil: 2006. DVD. 113min.
TERRA EM TRANSE. Direção e roteiro: Glauber
Rocha. Produção executiva: Zelito Viana. Fotografia: Luiz Carlos Barreto.
Montagem: Eduardo Escorel. Elenco: Jardel Filho, Glauce Rocha, Paulo Autran,
José Lewgoy, Paulo Gracindo e outros. Brasil: 1967. DVD. 115min.