Amigos do Fingidor

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Antísthenes Pinto, inventor e artesão 3/4

Zemaria Pinto

 

V

Voltemos a falar da poesia de Antísthenes Pinto. Em 1957, publica seu primeiro livro, Sombra e asfalto. Aos 28 anos, Antísthenes não faz concessões ao fácil, ao tragável, ao amorável – não existem dores de amor em Sombra e asfalto. Existe sim uma dor maior, porque ele opta por uma poesia de cunho existencialista, na aparência voltada para o indivíduo, mas em franco dialogismo com a humanidade.

 

Antecipo minhas rugas no espelho.

A sombra hirta que foi vejo curvada.

Piso fundo no chão que silencia

E vou contar estrelas na vidraça.

 

A ave do desejo pousa em livro.

(Não há no vácuo acústica às palavras)

Liberto já do sonho que não tive

Fujo de mim e só de mim fugindo

 

Sem dar um passo além do que pensara

Quando fui velho sem chegar a ser.

O meu patético olhar engole o longe:

 

– Escuro limitando com escuro

E quanto ao perto: cinza no cinzeiro

E o negro cão do tempo me mordendo.

(1987, p. 15)

 

Ossuário, de 1963, foi o livro que motivou no crítico Assis Brasil, para definir o trabalho de Antísthenes, a ideia de “uma poesia de interesse visual, descarnada, limpa.”[1] Morando no Rio de Janeiro, publicando regularmente no lendário Suplemento Literário do Jornal do Brasil, quando ainda dirigido por Mário Faustino, Antísthenes elabora poemas austeros, ásperos, sem concessões, de onde a poesia brota quase imperceptível: uma poesia contida, mas cheia de signos – onde os cães e os ossos, símbolos recorrentes na sua obra poética, fazem-se presentes, como no poema “Morto Vivo”.

 

fronte caída:

lágrima lavrada

no pedestal da fonte.

 

além o sobreposto

mar de ossos

esgarçando rastros

– fuzis de gritos!

de bruços:

reencontrar a rota

do meu mapa branco.

 

fazer-me bala,

deslocar-me uníssono

como um cão de aço.

morto

mais vivo.       morto pensante

de bruços:

grave loucura clara:

vivo morto morto vivo.

(1987, p. 41-42)

 

Angústia numeral, de 1976, é o livro de poemas mais emblemático de Antísthenes Pinto. Aquela contenção de Ossuário explode, treze anos depois, em uma festa de palavras, onde a predominância é do verso longo e delirante – ecoando Whitman, Maiakovski, Fernando Pessoa, Mário de Andrade. Li Angústia numeral em 1980, quando conhecia o autor apenas dos jornais. Contrariando a lição do peixe de Agassiz (POUND,1977, p. 23), em menos de uma hora, já havia lido os 41 poemas de Angústia numeral – e começava a relê-los.

 

sejamos malucos embora usemos gravatas

e fiquemos sempre de cócoras.

A mudez é a arma que nos faz rir

do caótico sol da refrega.

 

Sejamos, também, interiorizados como os postes

e deixemos os cabelos cobrir-nos como lençóis.

Sejamos cães, cães pelo menos vinte e três horas

por dia e façamos da chuva

a ordeira companheira a suavizar nossa náusea.

(1976, p. 11)

 

Aqueles versos mostravam-me que as leituras clandestinas da beat generation, censuradas pela ditadura, em especial a poesia de Allen Ginsberg, bem como a de Roberto Piva, não tinham sido vãs. Angústia numeral recebeu o Prêmio Prefeitura de Manaus de melhor livro de poesia de 1976.

O último livro original de poemas publicado por Antísthenes Pinto foi Curvas do tempo, em 1984. Editado pelo próprio autor, o livro configura-se como um legado que o poeta teimava em nos deixar: cada uma das faces de sua poesia múltipla está representada naquelas 70 páginas, que ainda se dão ao luxo de trazer novidades, como o uso da música, marcada pelo domínio do metro popular, aliado à harmonia advinda das entonações perfeitas, como neste pastoril, de sabor levemente surreal.

 

No declive do caminho

de um verde puro demais

cravei meus olhos em Mirra

como as abelhas que sorvem

as frescas flores do campo.

Foi bem cedo que a vi

com seus cabelos azuis,

as maçãs do rosto ardiam

e o que dizer de seus seios?

Havia um pássaro em pânico

entre gardênias e Mirra,

foi bem cedo que a vi

com seus cabelos azuis

nessa campina de sono,

de vacas tontas de sol

e laranjas crepitando

como pombos na manhã.

Cravei meus olhos em Mirra

como as abelhas que sorvem

as frescas flores do campo.

Foi bem cedo que a vi

com seus cabelos azuis,

as maçãs do rosto ardiam

e o que dizer de seus seios?

(1984, p. 37-38)

 

Mas estão também em Curvas do tempo os versos descarnados de Ossuário e os versos longos e arrebatados de Angústia numeral. Estão presentes os cães, os cães sempre presentes na poesia de Antísthenes. E também os ossos – as flores ósseas, o ósseo sol, o canto ossificado –, recorrências que se associam e se completam, nos quadros cáusticos que a inquieta poesia de Antísthenes Pinto eternizou.



[1] Dicionário Prático da Literatura Brasileira (1979), citado na orelha da Poesia Reunida (ver Bibliografia).