Zemaria Pinto
V
Voltemos a falar da
poesia de Antísthenes Pinto. Em 1957, publica seu primeiro livro, Sombra e asfalto.
Aos 28 anos, Antísthenes não faz concessões ao fácil, ao tragável, ao amorável
– não existem dores de amor em Sombra e asfalto. Existe sim uma dor maior, porque ele opta por uma poesia de
cunho existencialista, na aparência voltada para o indivíduo, mas em franco dialogismo
com a humanidade.
Antecipo minhas
rugas no espelho.
A sombra hirta
que foi vejo curvada.
Piso fundo no
chão que silencia
E vou contar
estrelas na vidraça.
A ave do desejo
pousa em livro.
(Não há no vácuo
acústica às palavras)
Liberto já do
sonho que não tive
Fujo de mim e só
de mim fugindo
Sem dar um passo
além do que pensara
Quando fui velho
sem chegar a ser.
O meu patético
olhar engole o longe:
– Escuro
limitando com escuro
E quanto ao
perto: cinza no cinzeiro
E o negro cão do
tempo me mordendo.
(1987, p. 15)
Ossuário, de 1963, foi o livro que motivou no crítico Assis Brasil, para definir
o trabalho de Antísthenes, a ideia de “uma poesia de interesse visual,
descarnada, limpa.”[1] Morando
no Rio de Janeiro, publicando regularmente no lendário Suplemento Literário do Jornal do Brasil, quando ainda dirigido
por Mário Faustino, Antísthenes elabora poemas austeros, ásperos, sem
concessões, de onde a poesia brota quase imperceptível: uma poesia contida, mas
cheia de signos – onde os cães e os ossos, símbolos recorrentes na sua obra
poética, fazem-se presentes, como no poema “Morto Vivo”.
fronte caída:
lágrima lavrada
no pedestal da
fonte.
além o sobreposto
mar de ossos
esgarçando
rastros
– fuzis de
gritos!
de bruços:
reencontrar a
rota
do meu mapa
branco.
fazer-me bala,
deslocar-me
uníssono
como um cão de
aço.
morto
mais vivo. morto
pensante
de bruços:
grave loucura
clara:
vivo morto morto
vivo.
(1987, p. 41-42)
Angústia numeral,
de 1976, é o livro de poemas mais emblemático de Antísthenes Pinto. Aquela
contenção de Ossuário explode, treze
anos depois, em uma festa de palavras, onde a predominância é do verso longo e
delirante – ecoando Whitman, Maiakovski, Fernando Pessoa, Mário de Andrade. Li Angústia
numeral em 1980, quando conhecia o autor apenas dos jornais. Contrariando a
lição do peixe de Agassiz (POUND,1977, p. 23), em menos de uma hora, já havia
lido os 41 poemas de Angústia numeral – e começava a relê-los.
sejamos malucos embora usemos gravatas
e fiquemos sempre de cócoras.
A mudez é a arma que nos faz rir
do caótico sol da refrega.
Sejamos, também, interiorizados como os
postes
e deixemos os cabelos cobrir-nos como
lençóis.
Sejamos cães, cães pelo menos vinte e três
horas
por dia e façamos da chuva
a ordeira companheira a suavizar nossa
náusea.
(1976, p. 11)
Aqueles versos
mostravam-me que as leituras clandestinas da beat generation, censuradas pela ditadura, em especial a poesia de
Allen Ginsberg, bem como a de Roberto Piva, não tinham sido vãs. Angústia numeral
recebeu o Prêmio Prefeitura de Manaus de melhor livro de poesia de 1976.
O último livro
original de poemas publicado por Antísthenes Pinto foi Curvas do tempo, em 1984. Editado pelo próprio autor, o livro
configura-se como um legado que o poeta teimava em nos deixar: cada uma das
faces de sua poesia múltipla está representada naquelas 70 páginas, que ainda
se dão ao luxo de trazer novidades, como o uso da música, marcada pelo domínio
do metro popular, aliado à harmonia advinda das entonações perfeitas, como
neste pastoril, de sabor levemente surreal.
No declive do
caminho
de um verde puro
demais
cravei meus olhos
em Mirra
como as abelhas
que sorvem
as frescas flores
do campo.
Foi bem cedo que
a vi
com seus cabelos
azuis,
as maçãs do rosto
ardiam
e o que dizer de
seus seios?
Havia um pássaro
em pânico
entre gardênias e
Mirra,
foi bem cedo que
a vi
com seus cabelos
azuis
nessa campina de
sono,
de vacas tontas
de sol
e laranjas
crepitando
como pombos na
manhã.
Cravei meus olhos
em Mirra
como as abelhas
que sorvem
as frescas flores
do campo.
Foi bem cedo que
a vi
com seus cabelos
azuis,
as maçãs do rosto
ardiam
e o que dizer de
seus seios?
(1984, p. 37-38)
Mas estão também em Curvas do tempo os versos descarnados de
Ossuário e os versos longos e
arrebatados de Angústia numeral. Estão
presentes os cães, os cães sempre presentes na poesia de Antísthenes. E também
os ossos – as flores ósseas, o ósseo sol, o canto ossificado –, recorrências
que se associam e se completam, nos quadros cáusticos que a inquieta poesia de
Antísthenes Pinto eternizou.
[1] Dicionário
Prático da Literatura Brasileira (1979), citado na orelha da Poesia
Reunida (ver Bibliografia).