Amigos do Fingidor

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Psicopatologia da composição de Música para surdos 1/6


Zemaria Pinto

 

Gênese. Não sei exatamente o que me move a escrever este texto. Talvez responder perguntas. Talvez formular perguntas cujas respostas eu desconheço. Só sei que preciso escrevê-lo (é uma ideia que nasceu junto com o livro)[1] e o farei pensando nos críticos que não tenho e nos leitores que não terei.

Começo por escancarar uma ideia que me é particularmente cara: o trabalho poético é resultante de um minucioso planejamento, consciente ou não, cuja execução pode levar toda uma vida. Uma obra aparentemente fragmentada como a de Drummond tem recorrências que se modificam ao longo dos anos, formando vários painéis das áreas de interesse do poeta. Os grandes poemas da humanidade, como Eneida, A Divina Comédia ou Os Lusíadas consumiram largos anos das vidas de seus autores, não tanto pela sua extensão, mas, principalmente, pela complexidade.

A minha minguada história é a seguinte: Corpoenigma, meu primeiro livro, publicado em 1994, foi inteiramente planejado e concluído em preguiçosos 12 meses. Eram 45 tercetos, divididos em 15 seções, cada uma com 3 poemas. Fragmentos de Silêncio, publicado em 1995, por outro lado, é um caos ao qual procurei dar um mínimo de ordem: são 49 poemas, escritos entre 1972 e 1995, divididos em 7 seções, com sete poemas cada uma. Mas se é claro que dentro das seções os poemas se inter-relacionavam, em todo o livro, a começar pela concepção gráfica da capa, havia um tema único: a passagem do tempo. Infelizmente, dos poucos leitores que tive, pouquíssimos perceberam isso, como o Hugo Pontes e o Rogério Salgado, de Minas, e o sempre Uilcon Pereira, de São Paulo.

Mais três anos são passados e surge este Música Para Surdos. É sobre ele que quero falar. Sua concepção. Sua feitura. Não do livro, que é diverso, mas do poema. Quero mostrar que não tive qualquer acesso de inspiração, nem faniquito espiritual, nem frenesi sexual, nem nada. Mesmo bons leitores, confundem o eu lírico com o autor – e toda poesia lírica se torna, sob esse prisma, mero veículo para as frustrações do autor. Espero que este texto sirva para eliminar essa visão medíocre – pelo menos, da minha poesia.  Cartesianamente, montei meu poema como se fora uma equação, ou uma estação do metrô de Londres, com todas as minúcias cronológicas de chegadas e partidas.

Tudo começou com a procura de definições para um novo poema de longa extensão. No Corpoenigma elegi a forma haicai. Tudo bem, neste novo projeto não haveria haicai. Mas assim como em Corpoenigma, eu queria continuar seguindo o conselho de Poe:

 

O que denominamos um poema longo é, de fato, apenas a sucessão de alguns curtos; isto é, de breves efeitos poéticos.[2]

 

A concepção de Poe se encaixa com perfeição em meu dia a dia atribulado, onde o banal cotidiano não deixa muito tempo para a criação. Surgiu, então, naturalmente, a ideia de usar o soneto, a mais popular e por isso mesmo a mais desgastada forma poética ocidental. Seria um desafio. Mas não se faz arte sem desafios.

Estabelecida a forma para, multiplicada, compor o meu poema, o próximo passo seria eleger um assunto. Isso não foi difícil. O soneto é uma forma essencialmente lírica e o lírico é a revelação do eu. Uma autobiografia poética, então? Não, apenas um mergulho tímido pela superfície desses eus dilacerados – a bênção Mário de Andrade, a bênção Fernando Pessoa – que habitam o poeta, quem ou o que quer que ele seja.

De posse da forma e do assunto, precisava estabelecer a extensão do poema. Ou seja, numa linguagem mais burocrática, precisava estabelecer os limites de atuação, para não ir nem tanto além nem muito aquém. Palavra puxa palavra, soneto lembra sonata e sonata tem 3 ou 4 movimentos. Ainda sem ter a extensão, tinha um título provisório, Sonata Selvagem, que subsistiria até a escritura do poema “exercício nº 17”, como se verá adiante.

Alguns dos meus leitores poderiam fazer uma relação com Quatro Movimentos, de Luiz Bacellar, pelo menos em relação à estrutura: quatro movimentos de uma “Sonata em Si Bemol Menor para Quarteto de Sopro”, nome adotado a posteriori, uma vez que na primeira edição do poema, ele é parte – dissonante – de Frauta de Barro, com o título “Quatro Epístolas”.[3] Também publicado como Quatuor e Quarteto, trata-se de um tour de force de interpretação desafiadora, que não mereceu até hoje, que eu conheça, uma leitura aprofundada. Fico a devê-la, como um compromisso com o mestre e amigo. Mas não havia nenhuma relação intencional. 

Sonhei, então com a minha música. Ela começava lentamente, um pouco melancólica, mas logo se tornava pulsante, denotando alegria e segurança. O segundo movimento era triste, depressivo. No terceiro movimento, a alegria retorna, mas já num ambiente modificado, mágico. O último movimento é uma festa de sons, vibrante, desafiador. Era preciso decodificar isso em palavras.

 

(Este ensaio será postado em seis partes, todas as sextas-feiras, até 1° de setembro.)



[1] Refiro-me à Música para surdos – Manaus: Valer, 2001.

[2] POE, Edgar Allan. A Filosofia da Composição. Tradução: Oscar Mendes e Milton Amado. In: O Corvo. São Paulo: Expressão, 1986. p. 63.

[3] BACELLAR, Luiz. Frauta de Barro. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1963. p. 123-152.