Zemaria Pinto
Gênese. Não sei exatamente o que me move a escrever este texto. Talvez
responder perguntas. Talvez formular perguntas cujas respostas eu desconheço.
Só sei que preciso escrevê-lo (é uma ideia que nasceu junto com o livro)[1] e o
farei pensando nos críticos que não tenho e nos leitores que não terei.
Começo por
escancarar uma ideia que me é particularmente cara: o trabalho poético é
resultante de um minucioso planejamento, consciente ou não, cuja execução pode
levar toda uma vida. Uma obra aparentemente fragmentada como a de Drummond tem
recorrências que se modificam ao longo dos anos, formando vários painéis das
áreas de interesse do poeta. Os grandes poemas da humanidade, como Eneida, A Divina Comédia ou Os
Lusíadas consumiram largos anos das vidas de seus autores, não tanto pela
sua extensão, mas, principalmente, pela complexidade.
A minha
minguada história é a seguinte: Corpoenigma,
meu primeiro livro, publicado em 1994, foi inteiramente planejado e concluído
em preguiçosos 12 meses. Eram 45 tercetos, divididos em 15 seções, cada uma com
3 poemas. Fragmentos de Silêncio,
publicado em 1995, por outro lado, é um caos ao qual procurei dar um mínimo de
ordem: são 49 poemas, escritos entre 1972 e 1995, divididos em 7 seções, com sete
poemas cada uma. Mas se é claro que dentro das seções os poemas se inter-relacionavam,
em todo o livro, a começar pela concepção gráfica da capa, havia um tema único:
a passagem do tempo. Infelizmente, dos poucos leitores que tive, pouquíssimos
perceberam isso, como o Hugo Pontes e o Rogério Salgado, de Minas, e o sempre
Uilcon Pereira, de São Paulo.
Mais três
anos são passados e surge este Música
Para Surdos. É sobre ele que quero falar. Sua concepção. Sua feitura. Não
do livro, que é diverso, mas do poema. Quero mostrar que não tive qualquer
acesso de inspiração, nem faniquito espiritual, nem frenesi sexual, nem nada.
Mesmo bons leitores, confundem o eu lírico com o autor – e toda poesia lírica
se torna, sob esse prisma, mero veículo para as frustrações do autor. Espero
que este texto sirva para eliminar essa visão medíocre – pelo menos, da minha
poesia. Cartesianamente, montei meu
poema como se fora uma equação, ou uma estação do metrô de Londres, com todas
as minúcias cronológicas de chegadas e partidas.
Tudo
começou com a procura de definições para um novo poema de longa extensão. No Corpoenigma elegi a forma haicai. Tudo
bem, neste novo projeto não haveria haicai. Mas assim como em Corpoenigma, eu queria continuar
seguindo o conselho de Poe:
O que denominamos um poema longo é, de fato, apenas a sucessão de
alguns curtos; isto é, de breves efeitos poéticos.[2]
A
concepção de Poe se encaixa com perfeição em meu dia a dia atribulado, onde o
banal cotidiano não deixa muito tempo para a criação. Surgiu, então,
naturalmente, a ideia de usar o soneto, a mais popular e por isso mesmo a mais
desgastada forma poética ocidental. Seria um desafio. Mas não se faz arte sem
desafios.
Estabelecida
a forma para, multiplicada, compor o meu poema, o próximo passo seria eleger um
assunto. Isso não foi difícil. O soneto é uma forma essencialmente lírica e o
lírico é a revelação do eu. Uma autobiografia poética, então? Não, apenas um
mergulho tímido pela superfície desses eus dilacerados – a bênção Mário de
Andrade, a bênção Fernando Pessoa – que habitam o poeta, quem ou o que quer que
ele seja.
De posse
da forma e do assunto, precisava estabelecer a extensão do poema. Ou seja, numa
linguagem mais burocrática, precisava estabelecer os limites de atuação, para
não ir nem tanto além nem muito aquém. Palavra puxa palavra, soneto lembra
sonata e sonata tem 3 ou 4 movimentos. Ainda sem ter a extensão, tinha um
título provisório, Sonata Selvagem,
que subsistiria até a escritura do poema “exercício nº 17”, como se verá
adiante.
Alguns dos
meus leitores poderiam fazer uma relação com Quatro Movimentos, de Luiz Bacellar, pelo menos em relação à
estrutura: quatro movimentos de uma “Sonata em Si Bemol Menor para Quarteto de
Sopro”, nome adotado a posteriori,
uma vez que na primeira edição do poema, ele é parte – dissonante – de Frauta de Barro, com o título “Quatro
Epístolas”.[3]
Também publicado como Quatuor e Quarteto, trata-se de um tour de force de interpretação
desafiadora, que não mereceu até hoje, que eu conheça, uma leitura aprofundada.
Fico a devê-la, como um compromisso com o mestre e amigo. Mas não havia nenhuma
relação intencional.
Sonhei,
então com a minha música. Ela começava lentamente, um pouco melancólica, mas
logo se tornava pulsante, denotando alegria e segurança. O segundo movimento
era triste, depressivo. No terceiro movimento, a alegria retorna, mas já num
ambiente modificado, mágico. O último movimento é uma festa de sons, vibrante, desafiador.
Era preciso decodificar isso em palavras.
(Este
ensaio será postado em seis partes, todas as sextas-feiras, até 1° de setembro.)